O ofício da cigarra, por Alisson Carvalho

O sol nem despertou por completo e já riscou o horizonte afastando o negrume da noite. Os trabalhadores já se revezavam exauridos pela rotina do dia anterior. Os noturnos voltavam, dessincronizados, aos seus ninhos, casas e tocas. A maior parte da vida, naquele grande jardim, criava corpo nas primeiras horas do dia, formando o rebanho da massa indecifrável de operários. Lá pela metade do dia uma criatura começava a cantarolar, todos conheciam seu triste fim. Era a mesma história repetida anualmente. Uma cigarra cantarolando e gozando da sua liberdade até que a escassez trouxesse a fome e a morte para ela e para aqueles que não sabiam preparar-se.

Contudo, a história escrita não apresenta lá suas virtudes verdadeiras. Há nos meandros, nas entrelinhas, no tutano dos traços passados de tempos em tempos, a ideologia do ponto de vista da formiga. Quem acha que pretendo defender as cigarras engana-se, pois só estou aqui para fofocar sobre o que se passou de boca em boca percorrendo os galhos da já extinta mata. E nem me perguntem de onde essa estória veio, pois os ventos que a trouxeram misturam-na com a tinta da imaginação… Pode ser com isso que haja mentiras ou exageros, coisa de gente que só tem eufemismos para consumir na vida tão monótona e enfadonha pregada pelas tais formigas outrora, quando bem sabiam o que iriam ensinar.

E acertou quem pensou que eu iria culpa-las, culpar o formiguei inteiro, ou melhor, atribuir a responsabilidade devida já que nessa selva acredita-se que não existam dolos, culpas ou mesmo um executor, um algoz e um culpado. Há quem diga que isso tudo é mero vitimismo camuflado pelo drama e má sorte da personagem preguiçosa que não sabia se planejar, a cigarra. Enfim, sempre tendemos a acreditar no cegamente no espontaneísmo , mas devo alertá-los que essa crença será abalada.

Pois bem, quando uma formiga carrega sua reserva alimentícia, seus nutrientes para os dias frios e de, possivelmente, escassez, na verdade pouco esforço faz já que na constituição de sua estrutura genética há, bem guardados, os segredos para sentir as mudanças climáticas. Não, nem pense que vou fazer uma explanação didática das formigas e compará-las às cigarras, coitadas, seria no mínimo crueldade. Não se trata aqui da extensa e complicada arte da mirmecologia, mas de outra comparação feita pela  a mãe natureza inúmeras vezes, como uma senhora melancólica tentando fornecer os melhores indivíduos ao ecossistema.

 Sim, há uma espécie de eugenia na natureza. E por construir os melhores seres, essa tal velhinha decidiu equipar as formigas com os elementos necessários para a sobrevivência. Não que as cigarras também não tivessem seus dispositivos, mas não há recursos para todos os bichos e pela carência desses recursos as cigarras ficariam excluídas quando a oferta fosse menor que a demanda.

Diariamente a velhinha fora atribuindo funções fragmentadas às suas cobaias, conseguindo, algumas vezes, o equilíbrio ideal para que seu imenso jardim funcionasse. Escondida na escuridão da relva, gozava da crença do espontaneísmo nutrida pelos seres. Ah, suspirava assistindo aqueles coitados achando que ter comida era de fato ser livre. Tinha os seus queridos, os operários que faziam o seu mercado funcionar: abelhas, cupins e formigas. Regozijava dos seus elegidos, pois até eles estavam imersos em filosofias baratas, consumismos que os faziam se sentirem pertencentes à elite naquela grande fauna de escravos.

As formigas, cupins e abelhas reproduziam, alegremente, o tal discurso de meritocracia para os outros que não foram preparados, tecnicamente, desde o período larval. Uns nem tinham oportunidade de vivenciar o período larval, pois tinham que agir e trabalhar para sobreviver. Contudo aquele discurso tinha lá as suas falhas, principalmente porque os que o defendiam eram apenas os animais presos àquela estrutura utilitarista e que muito se beneficiavam abdicando das suas responsabilidades sociais. Para esses tecnocratas pragmáticos, apenas os que trabalhavam, em pé de igualdade com eles, eram dignos da ascensão. Nunca observaram que poucos animais tinham os meios técnicos para se organizarem socialmente e criar relações que os preparariam para as situações mais adversas.

Lá, no alto dos galhos, laborando perigosamente em condições de insalubridade, a cigarra pouco tempo tinha para refletir a respeito de tais questões, pois era uma mensageira que trabalhava em regime diferenciado, cujo ofício, embora ridicularizado pela maioria, era de suma importância para a manutenção daquele sistema e que, como poucos sabiam, iniciava antes mesmo do sol nascer.

O que as formigas divulgavam, com seus informativos deturpados, era que as coitadas das cigarras viviam a vadiar pelas matas, cantarolando sem se preocupar com o amanhã. Presas em seus trabalhos técnicos, as formigas, mesmo que bem treinadas fossem, tinham os pensamentos limitados, um conhecimento que se restringia ao trabalho. Foram treinadas para dominarem, eram hábeis nas suas especialidades. Desde cedo aprenderam a construir a sociedade que lhes favoreciam, tornando-se a elite dos insetos.

Munidas com tais recursos, simples seria admitir a meritocracia e exigir que outros insetos fizessem o mesmo para alcançarem, todos, o nível de organização que elas conseguiram. Na prática parecia simples e convencer os seus explorados foi muito mais simples ainda, possuíam meios para construir as melhores escolas e os melhores suportes e na concorrência aberta apenas os seus seriam capazes de competir horizontalmente.

Um dia uma cigarra parou mais cedo, decidiu resistir a seus instintos e não trabalhar, fora instigada pela fileira de operárias que carregavam folhas e pedaços de frutas. Ficou observando atenta sem entender como formavam tão organizada fileira e caminhavam sincronicamente. O calafrio e medo de ser vista no ócio fê-la querer voltar para o árduo trabalho de mensageira e se uma das operárias não tivesse se incomodado com a curiosa intrusa, talvez a velha mãe natureza não tivesse tantos problemas em tentar impedir que essa estória caísse nas bocas dos outros animais e se espalhasse pelos ventos.

A formiga saiu da trilha e jogou o pedacinho de folha no chão. Quebrando as regras de segregação entre os insetos, rompendo a barreira das classes, questionou o ócio da cigarra que sem ter muito contato com outros animais – menos ainda o dom da oratória – apenas emitia uns monossílabos afirmando ou negando as perguntas da formiga. Indignada com aquilo a formiga nutriu-se de raiva, mas logo percebeu o trágico fim que teria a cigarra e tentou, em seu ultimo ímpeto assistencialista, avisá-la do presságio para que a mesma pudesse ter chances de sobreviver ao inverno eminente.

De nada adiantou, pois a cigarra não tinha meios técnicos para buscar armazenar seus alimentos, já que fora domesticada a comer e pensar apenas no presente sem aprender com as experiências passadas, tampouco vislumbrar um futuro para além das suas atribuições herdadas. Lembrar-se-ia do aviso da formiga meses depois, quando a cortina de neve levou embora a ultima folha do imenso tapete verde que ordinariamente ela chamava de lar.

 Arrastou-se pelo jardim inóspito alimentada pelo discurso benevolente de cumplicidade nacionalista, um irmão nunca abandonaria o outro. Mesmo desesperada sonhava com a certeza de que seria acolhida pela boa alma, pela colega.

Bateu quatro, cinco, seis vezes na porta da formiga e já quase definhando vomitou um barulho que chamou atenção da burocrata. A formiga, diferente do que a estória conta, nem se deu ao luxo de abrir a porta. Só se incomodou quando o gelo abandonou a terra e a brisa trouxera o odor putrefato dos restos do que um dia fora a pobre cigarra. Abriu a porta, afastou o cadáver e seguiu o seu trajeto diário.

Participação no 1º Prêmio da Academia de Letras do Médio Parnaíba

Prêmio Emília da Paixão Costa – Conto/Crônica

 

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