Quem é você na fila do pão?, de Alisson Carvalho

Foto de Victor Martins

Minha filha, quem é você na fila do pão?

Gritou a velha toda ornada nos diamantes. Ninguém soube responder, todos entenderam o significado. A fila do pão estava ali estampada na cara do povo. A mudez da resposta não era comodismo como bem disse a velha, outrora, aos seus filhos, todos donos da metade do lucro da cidade. A fila do pão nem existia até então, bastou um pequeno esbarrão da moça, um simples descuido, uma pequena mudança na sua rotina regrada e muito bem ensaiada para a boca enrugada e lambuzada de cremes importados explodir descontroladamente.

Pois bem, notando a não compreensão da construção da tal fila do pão, a anciã puxou a funcionária pelos cabelos e esfregou o rosto da menina no balcão de atendimento. A fila começava ali, dividia-se entre os que podiam e os que não podiam argumentar. A senhora sabia bem que às vezes era preciso erguer a voz, pois apenas dizer não bastava para reafirmar as diferenças das classes sociais.

Entre gritos, vaias e aplausos a senhora conquistou a atenção dos clientes. Todos encantados pelo discurso fascista e moralista da oradora. A autora da proposta vociferou contra a ampliação de direitos, pois, segundo esta, a rigidez era o que mantinha a ordem e na sua época – dias de coação das liberdades – não se viam delinquentes trabalhando em lojas renomadas. O coro reafirmou a falência do mercado, dos serviços prestados ali naquele condomínio de luxo. Onde já se viu dividir os mesmos espaços destinados aos remanescentes da aristocracia?

A permissividade, segundo a setuagenária, era a falência do mundo contemporâneo. Esbravejou loucuras contra a equidade, afinal investira tanto naquele condomínio justamente para não correr o risco de se deparar com as multifaces da pobreza. E que mal era aquele que se espalhara rapidamente até entre os espaços de socialização do seu microuniverso? A fila ia ganhando contornos, tornar-se-ia visível tão logo o medo da igualdade ficasse mais latente.

A fila do pão costumava ficar nas entrelinhas do cotidiano, mas por vias das dúvidas sempre era bom definir os limites, reforçar os estratos e as divisões. Existia uma demarcação intransponível na qual somente menos da metade da minoria poderiam passar. Logo, todos que não eram propriamente daquele grupinho restrito acabavam reproduzindo os mesmos mecanismos de apartação que os separavam do primeiro grupo.

A tal ativista setuagenária e os seus adeptos pertenciam a penúltima classe, eram os vestígios da classe média que resistiu ao terremoto econômico, viram os seus colegas ruírem classe abaixo e, na tentativa de se salvarem, isolaram-se. Deu certo, contudo a arrogância pareceu vir junto com a utópica segurança econômica.

Aquela fila do pão jamais respeitou a ordem de chegada, estava mais para um rito de manutenção do poder, era e é a forma de conservação do status quo, assim como a tentativa de enrijecer mais ainda a estratificação. Na fila existe quem vende e quem compra. E todos compreendiam bem o que significava estar na fila já que era justamente aceitar as normas e a organização.

Tem pão de todos os sabores, de todas as massas, com qualidade variada. Por isso, mesmo estando na fila do pão nem todos consumiriam o mesmo produto. Se a fila do pão fosse observada e descrita por algum antropólogo provavelmente revelaria, ao olhar do cientista, a identidade daquela população que estava exposta na fala, na postura, na forma de argumentar, nos gritos da multidão, no retraimento da funcionária e no silêncio do gerente, afinal:

“Você sabe com quem você está falando?”

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