O silêncio também me mata, de Alisson Carvalho

Foto: Jonathan Dourado

Perdemos.

Há algum tempo eu assistia assustado aos discursos desses líderes religiosos e pensava na contradição do ódio germinando num lugar que propaganda amor.

Os grandes conflitos atuais basicamente são cortados pela moral cristã, basicamente eu tento entender o meu microcosmo e consigo tranquilamente sentir empatia. Não acredito mais em desconhecimento, tampouco em dispersão diante do oceano de ideias que nos banha a face.

Nasci descrente e fui moldado pelo meio para crer, como a maioria cria. Felizmente nalgum ponto da curva da vida, ainda durante a infância, entendi que a metafísica só funciona em termos filosóficos, ou seja, quando abastecida pelo kantismo. Portanto, desde cedo aprendi a entender o mundo doutra forma, preferi temer os extraterrestres aos deuses e esse medo me foi mais benéfico.

Talvez por isso eu nunca senti nenhum grama de paixão pelas religiões, embora nunca tenha deixado claro ou expressado abertamente o que só depois entendi que se tratava de ateísmo. E sempre evitei falar disso, pois sei o quanto isso significa para os teístas, não crer em nada é tão -ou mais- ruim como a morte é para algumas pessoas.

Eu sempre fui um tanto teimoso, não costumava seguir as regras como as outras crianças e mesmo sendo o mais quieto e comportado, as minhas opiniões eram as mais polêmicas. A vida foi me “ensinando” a silenciar, com o polimento da educação eu aprendi que tudo que é denso é desprezado.

Aprendi a escutar minhas músicas “sem letras” no fone de ouvido, mesmo que todos ao meu redor liguem seus sons colossais. Aprendi que ser legal é ser superficial, despreocupado, saber dançar, ser IGUAL.

Ser normal é ser um burguês médio, polido e preparado para dialogar. Ou criar vínculos. Ou conquistar.

Cresci no meio dessa gente, mas sem pertencer a esse mundo e aprendi a rejeitar tudo que me enojava.

Eu nunca me preocupei com minha sexualidade, sempre tive uma vida equilibrada, sem confusões familiares, sem ter contato com a violência da periferia, nunca vi um assaltante usar ou mesmo portar uma arma (pode ser que aconteça, estamos todos sujeitos a isso, mas até hoje nunca sofri essa ameaça).

Não sei o que é a homofobia na pele, mas já vi meus amigos sofrerem desse mal.

Vivenciei minha infância e adolescência intensamente, gostava de desenhar e escrever histórias mais do que jogar futebol. Preferia conversar com meus amigos, mas, vez por outra, gostava de apostar corrida.

Nunca me importei com a ideia de namoro, demorei a ser invadido por essas questões. Meu primeiro beijo aconteceu aos dezessete anos de idade e por insistência de uma garota do grupo de teatro escolar, na mesma semana beijei pela primeira vez um colega da escola. Tudo aconteceu de maneira bem natural, sem pressão, sem coação.

Eu não sabia que gay podia ser qualquer pessoa, minha referência sobre gay era a personagem Vera Verão e mesmo assim eu não sabia o que significava ser “viado”, só via os outros falando. Achava que era mais aquilo do homem se vestir com roupas consideradas femininas.

Mesmo assim não me via na pele daquela personagem, representado por ela, afinal eu não queria ser uma mulher.

Eu só sabia que os homens me atraiam, soube disso desde a infância. E sabia disso porque quando assistia ao quadro Banheira do Gugu, de um desses programas de domingo, eu gostava de olhar para os homens.

Além disso, sempre desenhei personagens masculinos e aquilo intrigava um dos meus amigos que só desenhava mulheres, mas éramos crianças e nunca maldamos aqueles dados, os nossos gostos.

Enfim, nunca sofri preconceito por minha sexualidade ou pelo menos não abertamente, ou talvez não tenha percebido. Como sempre fui muito sério e debatia muito na adolescência acredito que as pessoas evitavam me confrontar, sabe-se lá.

O que importa disso é que nunca sofri para me assumir porque nunca precisei, tudo foi acontecendo de forma natural, fui deixando de sussurrar e passei a falar sobre as minhas aventuras amorosas abertamente, como vocês héteros fazem sem o medo de serem oprimidos, rechaçados ou até ameaçados.

Porém, um de meus amigos sempre teve a vida metralhada por olhares ferozes e, como eu geralmente andava ao lado dele, fui notando o quanto aquilo violentava-o. Ele reclamava dos olhares e se questionava porque tanta gente o encarava daquela forma. Uma vez revelou-me os absurdos que escutara de sua família tradicional cristã, composta na maioria por representantes da igreja construída nas adjacências da periferia onde moramos.

Nunca esqueci aquilo. Nunca esqueci. Enxerguei pela primeira vez a dor de quem sofre com o preconceito.

Certa vez descobriram que eu era gay, apesar de eu sempre ter dito que ia aos locais considerados para o público gay. Creio que algumas verdades são tão perturbadoras que apenas não se fixam na mente das pessoas, isso só é uma teoria.

Então minha família nunca mais tocou no assunto, nunca mais. Foi aí que conheci o tal voto do silêncio do qual alguns gays já haviam relatado.

Felizmente pra mim e infelizmente para minha família, ou felizmente, namorei um rapaz muito extrovertido que conseguia facilmente ganhar os corações, encantar multidões. O carisma e poder de persuasão fez com que ele conquistasse toda a família, até os mais conservadores. Em pouco tempo ele se tornou da família, passamos a falar e agir como um casal age e fala, carinhosamente, sem medo.

Nunca disse para minha família que ele era “meu namorado”. Éramos apresentados para a os outros familiares como “amigos”, até que a vida nos apartou e eu perdi o medo de falar. Hoje não tenho receios, da mesma forma que meus amigos héteros conversam sobre suas namoradas eu converso sobre as minhas experiências se eu quiser, claro. E o faço para socializa-los no meu universo, desmistificar a ideia de que gays são isso ou aquilo.

Nunca tive que sair do armário, nunca houve um e agradeço imensamente a educação que tive, mas hoje vejo que existem outras formas de coação, de apagamento, de invisibilizar alguém.

E eu não vou me calar!

Hoje percebo que sou o tabu, aquele de quem não falam, vejo todos da família perguntarem sobre os relacionamentos dos meus irmãos, heteros, contudo ignoram a pergunta quando me veem. Perguntam sobre outros assuntos, temem tocar na ferida da família: a homoafetividade.

Já tive primo que quase casou com outro homem e depois “virou” um homem de deus e “hetero”, já tive primo assassinado por ser travesti, também invisibilizado nos assuntos familiares.

Qual o problema disso se não tenho conflitos?

O silêncio e a calmaria são mera farsa. “Esse silêncio todo me atordoa, atordoado permaneço atento na arquibancada pra qualquer momento ver emergir o monstro da lagoa”, parafraseando Chico Buarque.

Quando os discursos moralistas começaram a eclodir o país se deparou pela ‘primeira vez’ com a palavra “homossexualismo” abertamente e começou a se pensar nisso sem tabus, mesmo que de forma ultrajante. Foi então que o movimento de resistência também acordou para responder as ofensas, a pauta gay passou a ser o centro dos debates e aconteceu o que os líderes religiosos mais temiam, ganhamos espaço de fala, conquistamos esse espaço.

Dar visibilidade, dar o direito de resposta e de fala é respeitar a existência. Hoje vejo a verdade por trás do silenciamento e da calmaria, vejo que não ter conflitos não significa que haja uma aceitação. Essas eleições ajudaram a enxergar um pouco do rosto por trás das máscaras polidas e pseudo-burguesas da minha família.

Silenciar, permitir que candidatos com discursos moralistas ganhem mais espaço eu até compreendo, faz parte do sistema de ideologias que são apregoados diariamente nas mentes de quem frequenta grupos reacionários, contudo permitir que propostas de mundo abusivas se tornem presente nos mesmos círculos sociais é ser condizente com a violência e o apagamento que sofremos diariamente.

Você pode não concordar e fingir que eu não existo, mas eu existo e estou em algum lugar. Que lugar eu estou? É tão confortável não me conhecer só pelo que eu represento? Eu sou um estranho que divide o mesmo laço genético, apenas isso, um estranho que leva consigo uma maldição. Não falar em mim não vai mudar quem eu sou.

Não falar de mim não mudará quem eu sou.

Fingir quem eu sou é negar a minha existência. Eu sou tudo isso que você abomina, sou o que você mais teme conhecer.

Minha sensação é de derrota, sinto que perdemos ao ver emergindo tanto moralismo e tanto discurso de ódio e seria menos absurdo se tudo partisse de qualquer ambiente, senão das instituições que comercializam a alma, os sentimentos e as crenças humanas, mas é justamente de lá que ecoa o berro violento.

Alisson Carvalho

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