Conservação Patrimonial e Identidade, por Jasmine Malta

Discutir sobre Patrimônio, sua identificação – material e imaterial – e consequente preservação, não é atividade recente; mas tem sido praticada em diversas instâncias sociais e mobilizado várias partes do mundo. Porém, para se abordar “o global” é necessário pensar “o local”.

Com esse objetivo passei a integrar o Grupo Multiprofissional Cavalgada da Missão, cujo objetivo maior é resgatar a tradição religiosa e cultural da região de Aroazes/Piauí. Devido minha formação mais ampla na área de Letras, sigo na busca pela coleta do legado oral: através das lendas, dos causos, das cantigas, das histórias familiares. Aquilo que ainda permanece na memória dos moradores mais antigos e pode ajudar a delinear pontos obscuros do passado, e basilares para a recuperação da identidade local; contribuindo também para executarmos com propriedade cada vez maior o Evento. Porém, o olhar de Designer de Interiores e Artista Visual comprometida com as questões patrimoniais, também foi aguçado pelo riquíssimo material encontrado na região.

Em setembro aconteceu a segunda edição da Cavalgada, com grande envolvimento da comunidade e adesão de gente do país inteiro; além de ampla cobertura jornalística. Um dos momentos da programação foi uma visita à Fazenda Serra Negra, pois a maior parte dos convidados presentes não conhecia ainda a edificação e sua importância histórica; há quase quarenta anos ela compõe o acervo de propriedades do grupo Edson Queiroz, sob tutela da Fundação de mesmo nome.

Existem muitas especulações populares e investigações acadêmicas sobre a origem e permanência da fazenda, mas cabe nesse momento a abordagem pela óptica patrimonial. Foi sob esse viés que busquei trazer à luz algumas informações e análises investigativas. O casarão encontra-se em terrível estado de abandono e decadência, com uma parte já desabada e outras muitas em situação delicada. Há a datação de 1766 em um dos tijolos da construção, mas a ocupação do local é ainda anterior.

Na História do Piauí existem muitos pontos a serem revistos, e alguns ainda a serem construídos; mas não se pode negar o quanto pouco valorizamos nosso passado: ou por vergonha, ou por pura falta de conhecimento. Qualquer um desses motivos pode ser solucionado com a leitura e o debate acerca de obras pontuais para nossa reconstituição e, principalmente, apropriação desse saber.

O fato da propriedade da Serra Negra pertencer a um grupo cearense já nos tira uma parte do sentimento de “pertencimento”, tão importante para a solidificação da identidade local. Porém, não invalida propostas de pesquisa e nem o fomento ao debate com a comunidade. Essa mesma muito curiosa pelos fatos, e muito receptiva na contribuição cultural ao resgate histórico.

Como Designer de Interiores sigo duas áreas de investigação acadêmica: a primeira através da História do Mobiliário e do Design, e a segunda através do Paisagismo e Ambientação de Jardins. A estrutura do casarão, sua divisão interna, elementos e objetos de interiores, são pontos de interesse e que retratam uma parte importante do mosaico piauiense ali disposto. Testemunhas materiais de uma época e das transformações/adaptações pelas quais a construção passou.

Os fogões a lenha, janelas e portas, treliçados, cabideiros, argolas e armadores, puxadores, estrutura do telhado, beirais e peitoris, uma cama: cada elemento dispõe ao visitante sua parte nessa história, saindo do plano individual e passando ao coletivo. A importância do resgate patrimonial passa por esses pontos, de onde a vida íntima e privada constitui parte da memória coletiva e resgata um passado sobre o qual itens foram perdidos pelo tempo decorrido. Um exemplo é a cama ainda encontrada no casarão, trata-se de uma peça nas dimensões do que hoje conhecemos como “solteirão”, mas que também comporta um casal.

É preciso ressaltar que quando os imigrantes europeus vinham para Brasil, no Período Colonial, sua bagagem era reduzida aos baús e arcas contendo roupas e objetos pessoais, mobiliário de grande porte era fabricado localmente através dos mestres de marcenaria já fixados aqui. E boa parte do que compunha o acervo residencial era formado por bancos e tamboretes, mesas de refeição, cadeiras, camas de varas (para os menos abonados) ou de tiras de couro – o catre (para os mais afortunados), esteiras e redes (já advindos das mãos indígenas). A abundância de boa madeira em nossas terras proporcionava essa comodidade e gerava pequena renda local. Boa parte das peças eram produzidas usando técnica de “macho-e-fêmea” com o reforço de amarrações e cavilhas (fabricadas em também em madeira). A metalurgia era utilizada em dobradiças, puxadores, arrebites e fechaduras; ficando para estrutura das camas com o artifício já citado.

A peça ainda resistente na Fazenda Serra Negra passou por diversas alterações, tento em sua apresentação estética (cabeceira e “pés” são de período bem mais recente, com um design já dos anos 50-70 do século passado) e recebeu um estrado em madeira que aproveitou as entradas originais para as tiras de couro. O formato dessas entradas foi desenhado para que as peças em couro fossem trespassadas dando uma volta nas laterais da cama. Não apresenta marcas de dossel em sua estrutura, imagina-se que fosse usado preso ao teto, como os mosquiteiros atuais, pois o calor de sertão pedia proteção contra os insetos, mas não o fechamento da ventilação. Tal acessório é usado na Europa para dar maior privacidade ao usuário e também para aquecer durante o inverno.

O objetivo em fazer essa breve análise através de um único elemento presente no casarão é demonstrar como uma peça de uso particular pode contar tanto sobre a história de uma civilização, e resgatar a memória de toda uma comunidade. Quantas pessoas não terão usufruído dela, e ainda podem contribuir muito mais com seu resgate e valorização patrimonial.

Retomo o ponto inicial sobre a necessidade de conhecermos nossa própria história para sabermos/aprendermos a valorizar a riqueza material, e imaterial, da qual ainda podemos dispor. A partir do momento em que há essa coleta formativa/informativa, nos sentimos parte desse todo e levamos adiante a propagação desse conteúdo. Não é apenas o Tombamento que faz a preservação patrimonial é a apropriação cultural da comunidade que leva ao resgate e à conservação. É preciso estender o debate, unindo o meio acadêmico e a população em geral, e executar as soluções conclusivas. A Fazenda Serra Negra clama por urgência!
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Por Jasmine Ribeiro Malta – Designer de Interiores, Professora, Artista Visual

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