O privilégio do trabalho, por Ayra Dias

Arte: Zayze

Tive uma infância regada de amor, brincadeiras e estudos, mas, como uma criança pobre, filha de pescadores da pequena cidade de São Caetano de Odivelas no interior do estado do Pará, também aprendi o valor do trabalho, pois este era motivo de orgulho para toda a comunidade que muito duramente ainda hoje luta para viver. Fui moldada a partir desses valores, mas hoje percebo o trabalho como privilégio e, não raras vezes, como um processo violento.

Aos 23 anos, muito diferente de quando tinha 12/13 anos e vendia bolo de macaxeira pelas ruas de Odivelas, ou quando passava as tardes vendendo coxinha na porta de casa, sou impedida de trabalhar. Meu currículo é avaliado e sou considerada digna de uma entrevista, no entanto, ao chegar ao local, perco a vaga de imediato, pois minha corpa travesti grita e incomoda uma sociedade que não hesita em nos violentar.

A violência se inicia no ato de fazer o currículo profissional, pois nesse momento decido aceitar todas as violências impostas pelo mercado de trabalho, pois não diferente de antes, trabalhar não é uma opção, é condição obrigatória para garantir a minha sobrevivência, assim como daqueles que nascem pretos, pobres, periféricos ou dissidentes de gênero como no meu caso.

Wanderley Santos, sociólogo brasileiro, desenvolve o conceito de cidadania regulada, o qual aponta que o capital e o estado desenvolvem estratégias e normas que os trabalhadores devem seguir para então terem o status de cidadão garantido, pois o valor dos sujeitos em sociedades como a nossa se dá a partir do trabalho. Logo, travestis, dentro desses processos de violência, também perdem seu direito de cidadania.

No dia 08 de Julho de 2020, participei de uma entrevista de emprego; ao final, o entrevistador, que era uma homem cis e branco, disse que algumas pessoas não se encaixavam no perfil, alegou que algumas eram qualificadas demais, percebi que estava falando de mim, pois sem falsa modéstia eu tinha o melhor currículo entre os entrevistados, sendo a única a ter experiência na área da vaga pleiteada.

Ao sair da sala, me deparei com a cara de pânico dos funcionários do local, olhares que, de acordo com minha interpretação, diziam: “Quem deixou uma travesti vir fazer entrevista de emprego nesta empresa?” Saí com a certeza de que não receberia uma ligação ao fim do dia. No entanto, ela aconteceu, a recebi, e a pessoa do outro lado disse: “Infelizmente, você não poderá continuar conosco, boa sorte em sua caminhada, boa noite!”, em tom de voz envergonhado.

É engraçado pensar que, mesmo estando disposta a enfrentar violências, morrer um pouco por dia tendo a minha existência negada, mesmo sob condições desumanas, não sou digna. É estranho dizer que esse processo de exploração ao qual estão sujeitos muitos trabalhadores é um privilégio, mas infelizmente o mercado de trabalho formal é espaço destinado a alguns sujeitos e muitos outros são expulsos dele apenas por existirem.

Apesar de tudo, não me deixo abater, pois sabia que isso poderia acontecer. Seguirei tentando, na esperança de um dia ter a chance de provar que sou uma profissional competente, e me entregando a mais um processo de violência, onde terei que trabalhar três vezes mais que os outros para mostrar meu valor.

A pergunta, no final da entrevista, foi “qual seu sonho?” Agora, diante de tudo o que aconteceu, me arriscaria a dizer que hoje sonho com uma sociedade em que me permitir passar por estas violências não seja uma opção. Eu não vou esquecer este dia, será mais um daqueles que eu uso como incentivo para destruir essa sociedade cisheteronormativa.

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