Suflê de chuchu

Era assim que ela se referia à esposa de seu namorado. Embora ela gostasse da palavra “amante”, Lorrayne preferia se dirigir ao rapaz como namorado. Na realidade ela até preferia se autointitular “amante”, porque vem do verbo amar. Impossível não lembrar d’El amante menguante, o documentário que se passa dentro do longa Fale com ela, de Pedro Almodóvar. Aliás, eles viram juntos no cinema, porque ela adora cinema, a arte, não o produto de entretenimento.

Ela era uma mulher bela e requintada, de brega só o nome. Algo que transitava entre drag queen e garota de programa, mas não havia muito o que ela pudesse fazer, foi escolha dos pais. O nome de seu amado ao contrário não tinha nada de original. Era mais um Antônio no mundo. O que dizer dela, a paquita do capeta? A criatura que mais parecia renascida das chamas do inferno se chamava Antônia. Difícil saber se era só falta de criatividade ou uma tentativa ridícula de aparentar que seus destinos foram traçados na maternidade. 

O fato é que Lorrayne e o namorado estavam bem, e ela nem odiava a filhote de lombriga. Por ela só nutria um sentimento de pena. A coitada era uma argila nas mãos do marido, como um sofá de zona, era empurrada para onde ele queria, existia para servi-lo. 

Um dia encontraram-se no shopping, ele e a coxa de cobra – nem uma cobra inteira a bife de rato era capaz de ser. A amante obviamente foi cumprimentá-lo, afinal ela era uma dama. Por mais que que a tal da sororidade se debatesse no interior de seu cérebro brilhante tentando sair, ele não conseguiu. O sarcasmo feminino o sufocou com empáfia.  

Como já mencionado neste breve relato, a namorada era uma linda mulher. Linda e inteligente. Morena, esbelta e vibrante. Aliás, em tempos politicamente corretos, usar termos como “morena” pode não soar bem, mas a nossa protagonista não se importava com isso. Lembrou da vez em que leu uma postagem da escritora Vanessa Trajano, ela dizia que adora se autointitular morena. Nossa protagonista, assim como a escritora, acha a palavra “morena” bonita, dançante, sonora. MO-RE-NA. Morena rosa, morena manga, morena canela, são tantas nuances possíveis, diferente do tom de pele da mocoronga. A pobre alma tinha uma pele desbotada, parecia que tinha ficado de molho em água oxigenada desde que nasceu. O cabelo então, olhar para ela e não pensar no espantalho do fandangos era impossível. Era uma coisa rebelde, ardia os olhos ver aquela penugem mal tingida. As ondas malfeitas evidenciavam a falta de habilidade da alma peidona em usar qualquer ferramenta para dar volume às mechas ralas.  

Lorrayne, ao contrário, exibia cabelos pretos e fartos. Eles farfalhavam quando ela caminhava, os movimentos dos quadris eram sedutores, agarrado a eles a bela raba da jovem mulher. As longas pernas se equilibravam com destreza nos saltos elegantes. A outra tinha uns cambitos que lembravam os de uma rã. O calçado combinava com todo o resto, uma chinela que parecia ser da promoção do mercadinho da vizinhança. Bunda não tinha, só o cuzinho trepado embaixo dos quartos, que aliás ficavam perdidos na calça jeans tamanho maior. 

Oh céus! O q ue ele viu nessa mulher? O par de óculos deixava a miséria com cara de pedagoga do Mobral. Uma pinguelo seco, espírito sem graça, verdadeira água de salsicha. Aposto que ela usa lingerie bege. Aposto também que ela compra no camelô. Pague 5 e leve 10. Mas que horror! 

Eu acho que você se apaixonou. Não há outra justificativa para ver tantos defeitos na esposa do cara. Aliás, você sabe que o errado na história é ele. Por que insiste em se martirizar tentando encontrar uma razão para ele ficar com ela, e não com você?  

Mas eu uso perfume importado e lingerie de grife. Ela deve se desinfetar com Avon e vestir calcinhas diga meu bem. 

Para começar, a Avon tem ótimos perfumes. Esse estereótipo que você traçou é antigo e não serve mais. Para terminar, pouca importa de onde vêm as calcinhas que ela usa, ele se interessa pelo que elas guardam. 

Você é minha amiga ou dela? Está do lado de quem? 

Estou do lado das mulheres. Desde que cheguei estou ouvindo você falar mal dessa mulher que você nem conhece. Não chamou ela pelo nome uma única vez, só xingou a pobre moça. 

Ela não é moça, é um couro velho que não usa maquiagem, não veste uma peça sensual e nem usa joias, no máximo umas bijuterias da shein. 

Lorrayne, eu estou preocupara com você. Faz sete anos que você mantém essa relação que não dá, não promete e nem diz quando vem. A quem você quer enganar quando diz que não quer nada sério com ele? O que vocês têm já é sério, e a Antônia não é a sua inimiga. O único errado nessa história é ele, que mantém esses relacionamentos enganando as duas partes. A esposa que não sabe o traste que de marido que tem, e você que se priva de estar com uma pessoa que te ofereça o que você merece. Além disso, todo esse seu discurso foi absurdamente machista e preconceituoso. A minha mãe se formou no Mobral, sabia? E eu tenho muito respeito por todos os profissionais que lá atuaram, desde pedagogos a professores. Minha amiga, você precisa melhorar. Que discurso vergonhoso. 

As lágrimas escorreram. Sentiu vergonha pela forma como se expressou. Pensava na pessoa que já tinha sido e na que havia se tornado. Não gostou do comparativo. 

Quando conheceu Antônio seu lado intelectual era mais forte, de repente se viu gradativamente reduzida a um pedaço de carne. Estava malhando mais e lendo menos, passava mais tempo no salão e menos nas livrarias, gastava mais dinheiro com roupas que com programas culturais. Sua amiga tinha razão. Antônio a transformou na pior versão de si mesma, uma mulher ciumenta e mesquinha. 

Não tenho alternativa a não ser terminar com ele. 

Já devia ter feito isso há muito tempo, mas antes tarde do que nunca. Você sabe que será difícil. Ele é controlador, não vai deixar você sair tão fácil. 

Se tem uma coisa que o Antônio aprendeu em todos esses anos foi a reconhecer a hora certa de baixar a bola. Ele sabe que o meu salto é maior que o pinto dele. 

Tem alguma história para partilhar comigo? Eu vou adorar saber. Sobre qualquer assunto, os felizes e tristes, de famílias, amantes, amigos, festas, morte, paixão ou doença. Tudo vale. Posso garantir uma escuta atenta e forte. 

Emaildeniseverasletras@gmail.com 

Instagram: @deniseveras1 

Ilustração: Chuchu “Daniel Dan. Disponível para uso gratuito em: https://www.pexels.com/pt-br/foto/fresco-novo-verde-ecologico-7543109/

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