Domingo é dia de fazer bolo para agradar os afetos, alimentar o espírito e aquecer o coração. Sempre que faço bolos lembro de um texto da Márcia Frazão em que ela diz que o bolo não cresce se você não agradece.
Com essa sentença o que ela nos ensina é que cozinhar é um ato mágico, um processo alquímico de transformação dos ingredientes em receitas completas e deliciosas. Essa sentença também me faz lembrar a minha mãe que repetia alhures que se você não estiver bem o bolo não vai prestar. Não se trata apenas dos elementos palpáveis que são colocados ali, é também o que sentimos, pensamos e vibramos durante o processo. Em suma, é a energia da bruxa que está a realizar a magia.
O bolo ficou feio, rachado, cheio de fissuras e parecia queimado. Fiquei triste. A receita eu havia pego com uma amiga, cujo bolo de banana foi um dos melhores que já comi. Os meus planos eram oferecer um belo café da tarde para os meus, mas me vi frustrada ao tirar o preparado do forno. A minha mãe foi a primeira a provar.
Filha, está muito gostoso.
Atropelado – era assim que o meu pai se referia às receitas que não saíam com a estrutura vertical apropriada.
Só porque está atropelado não quer dizer que esteja ruim.
Provei. O sabor era muito parecido com o que a minha amiga ofereceu no outro dia. Lembrei de novo da escritora. Ela não mencionou nada sobre a aparência que os bolos devem ter. Mastiguei a fatia sentada no sofá, com as pernas estiradas. Enquanto deglutia eu observada as minhas cicatrizes, são muitas. No joelho direito devem ser umas três, lembranças das aventuras de patins quando eu tinha 9 anos. No ombro esquerdo o dia em que uma lasca de pedra da parede da casa da minha avó entrou pele adentro. As pedras foram caríssimas, lembro de ter ouvido meu pai comentar à época. Até hoje carrego um pedaço de pedra cara no meu braço. Quando olho no espelho e vejo a cicatriz em alto relevo, sempre penso que carrego comigo um pedaço do sacrifício da minha avó para construir uma morada para os oito filhos que ela criava sozinha, após ter sido abandonada pelo marido.
No supercílio a marca do dia em que bati a cabeça em um parafuso na escola. A estupidez foi fruto de uma aposta com os colegas. Fiquei ferida e fui para o pronto socorro, mas fui ovacionada por meia dúzia de moleques que acharam fantástico o meu feito. Sempre que passo sombra nos olhos dou um leve sorriso, lembrando do dia em que impressionei os meus colegas.
Meu braço direito é torto porque caí de um escorregador aos 7. Tenho uma grande cicatriz na lateral do pé direito porque enfiei o bendito no raio da moto em movimento. Nesse dia meu pai fugia da chuva.
Tenho calo em um dos dedos da mão direita de tanto escrever. Tenho dois implantes na boca porque meu filho mais novo quebrou meus dentes com um carinho muito intenso. Desse dia só lembro da gargalhada dele.
Terminei a fatia de bolo contente, pensando que viver é isso, desenformar o bolo com urgência, misturar mal os ingredientes, deixar passar do ponto ou fazer substituições. Não importa onde erramos, o que importa é a nossa essência está lá, e ela pode ser deliciosa.
* O título desta crônica faz referência ao livro “A cozinha mágica de Márcia Frazão”, e é de autoria dela. Aqui tomo a expressão emprestada oferecendo os devidos créditos.
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Imagem: Acervo da autora.