Filha de Mãe’Ude e Mãe’Glai, neta, irmã e tia. Ekedy no terreiro-escola Ilê Asê Oba Oladeji, Filha de Xangô e Oyá. Pedagoga, professora e doutora em Educação. Autora de livro, ativista social e pesquisadora. Ou apenas cidadã, sobretudo, humana. “E não posso ser eu uma mulher?”, questiona Letícia Carolina Nascimento, inspirada na famosa pergunta de Sojourner Truth e adaptada, ao mergulhar em uma identidade multifacetada. Da qual conjuga a liberdade de não aceitar a limitação de quem sobrevive, apenas daquilo que é passível de fazer sentido.
Uma força da natureza, carregando consigo uma intensidade vibrante que transforma e inspira. Travesti, negra e gorda, entregue de olhos fechados e peito aberto à vida, Letícia reverbera como um chamado à autodeterminação e à transformação. Onde ser protagonista de si mesma é um grito de resistência e um chamado à reflexão sobre as diversas maneiras de existir, principalmente para identidades LGBTQIAP+ às quais fogem às normas sociais impostas. Afinal, nada é mais urgente que aplaudir a busca indomável pela autenticidade, diante do concreto de uma realidade provisória.

Referência no movimento transfeminista e na luta por uma sociedade mais inclusiva, ela nos lembra, a cada passo que dá, que a busca pela autenticidade é um ato de resistência. É um estado original de tudo que é vivo e vibrante, de tudo que se move, se redescobre e se reinventa. De fato, Letícia nos guia em um exercício de liberdade e autoaceitação que revoluciona, à medida que sedenta de agoras e faminta de novas experiências. Sua existência celebra a oportunidade de se encontrar na confissão de uma narrativa que a retrate, exaltando a precisão de suas escolhas e a clara expressão de seus medos. Ao lançar luz às experiências de mulheres trans e travestis, ela ilumina a força que reside na pluralidade e resistência, promovendo um movimento que ressignifica o entendimento de justiça social e equidade.
Autora do livro “Transfeminismo”, publicado em 2021 pela editora Jandaíra como parte da coleção “Feminismos Plurais”, organizada por Djamila Ribeiro e traduzido para o francês com o título “Le transféminisme: genres et transidentités” pelas Éditions Anacaona, Letícia utiliza sua própria trajetória como ponto de partida para discutir questões de gênero, identidade e inclusão, desafiando normas sociais e promovendo a autodeterminação. Ao recusar definições rígidas e defender o conceito de “verdade inventada”, ela nos convida a refletir sobre a fluidez das identidades humanas e o poder da reinvenção. Tal qual não apenas promove a visibilidade trans, mas também desmantela narrativas opressivas, apontando para a necessidade de uma sociedade mais justa e igualitária. Observadora de seus próprios extremos, ser intensa é tanto sua maior qualidade quanto seu maior defeito, uma vez que, imbuída de alma, encharca os caminhos onde passa e toma a forma que lhe for pedida.
Primeira mulher travesti a ocupar uma cátedra na Universidade Federal do Piauí (UFPI), marcando um momento histórico para a inclusão e representatividade tanto no Estado quanto no Brasil, Letícia Carolina Nascimento é a prova de que a liberdade de ser é um ato político. É saber tanto de si a ponto de se experimentar em novos eus para não saber tudo de novo. É definir conscientemente seus próprios limites e deixá-los abertos para nutrir o prazer de duvidar, questionar, romper e reatar consigo mesma. Sua conexão à ancestralidade e à espiritualidade — como ekedy e filha de Xangô e Oyá — reforça ainda mais a riqueza e a complexidade da sua identidade enquanto a vida se redescobre. Se reinventa. E não cansa de se impressionar com o que vê de si. Ela transcende os limites de sua individualidade ao amplificar as vozes de comunidades marginalizadas, inspirando outras mulheres trans e travestis a reivindicarem seus espaços e histórias.

Ao questionar: “E não posso ser eu uma mulher?”, Letícia traz à tona uma reflexão crucial sobre as múltiplas formas de ser mulher, contestando normas rígidas e abrindo espaço para a aceitação das identidades não conformistas. Ecoando como um desafio poético, político e existencial: um grito que atravessa barreiras e convida à reflexão. Sua voz, tanto na pesquisa quanto na literatura, promove a desconstrução dos rótulos que, frequentemente, limitam as identidades de gênero. De forma a nos levar a refletir sobre como a sociedade pode e deve abraçar a pluralidade dos modos de ser mulher. Ao desmistificar os contornos das contradições cotidianas, Letícia emerge como uma força transformadora expondo as hipocrisias e desigualdades que muitas vezes permanecem veladas.
Feiticeira decolonial de devires e bruxa mestiça da Sociopoética, ela constrói histórias, quebra silêncios, traz visibilidade e dignidade a um grupo que tem muito a oferecer ao mosaico da humanidade. Transitando entre as artes, a escrita e o ativismo, contribuiu com artigos como: “LAERTE-SE” E “TOMBOY”: CONVITES ÀS EXPERIMENTAÇÕES DE SI, Revista Ambivalências (2019); Reflexões em Torno da Saúde da População LGBT: Cruzando Temas, Problemas e Perspectivas, Revista Brasileira de Estudos da Homocultura (2020); Eu Não Vou Morrer, Revista Inter-Legere (2020). Ainda em 2020, participou da mesa “Literatura com Causa” na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) e “Vozes LGBTQIAP+: O que vem pela frente?” na Bienal do Livro do Rio em 2021. Além de “Leca”, uma obra infantil lançado em 2024 pela qual desafia as convenções de gênero através de sua história.