O retrato honesto da arte de Jeneci – Entrevista

Jeneci no Piaui
Foto: Caio Negreiros

A turnê de Jeneci pelo Piauí mal terminou e já estamos com saudade. Citando os versos de Feito Pra Acabar: diretamente da estrada que não cabe onde termina, nós da Geleia, trouxemos para vocês o resultado de um bate-papo leve e intimista que tivemos com Jeneci, antes da primeira apresentação, em Teresina. Imbuído de expectativa em apresentar pela primeira vez o seu show ao Piauí, o artista nos revelou cenários do decorrer da vida e como estas experiências refletiram na produção dos seus três discos:” Eu tento fazer disso um retrato honesto, já que somos todos uma máquina fotográfica de seis sentidos”. 

Maria Teresa: Hoje você inicia uma série de shows aqui no Piauí, tocando pela primeira vez um show realmente seu, mas já esteve aqui em 2012, acompanhando o Arnaldo Antunes. Como foi a experiência? Qual e como foi o seu contato com o cenário local?

Jeneci: A gente vive essa rotina. Eu digo “a gente” em nome de todos os artistas que eu conheço e que cada dia estão em uma cidade, passam o dia e depois voltam para casa. Muitas vezes a gente chega para fazer a nossa entrega, e viver essa entrega é construir isso com quem estiver junto. E, no momento seguinte, a gente tem que voltar pro hotel. Dali duas horas, pegar um voo e voltar para casa. Então, é muito raro conseguir fazer algum contato profundo com qualquer frente cultural da cidade. A comida é a mais imediata, é a primeira a ser apresentada. Mas digo, é tudo mais superficial, né? Seja o contato com a paisagem, com os Oásis, com a comida, com os grãos, com as pessoas, com as músicas, com as linguagens artísticas, dá pouco tempo pra gente sacar isso. Então sempre que vivo isso eu fico com aquela euforia “caramba, estou chegando no Piauí!”, e é tão pouco tempo. Então assim, eu fico com os poros todos atentos para captar o máximo que eu puder da passagem por aqui. Quando eu vim para o Festival de Inverno de Pedro II com o Arnaldo, tive dois dias. Eu até tive tempo de garimpar um pouco de Opala bem bonita que achei. Fiquei com aquela sensação “fui no Piauí”, mas é uma sensação assim que você pode até se exibir “fui no Piauí!!”, mas é só uma sensação do que foi, sabe? Agora dessa vez… quatro dias! Teresina, daqui a pouco vamos tomar uma Cajuína, Oeiras, Piripiri e depois Parnaíba. Se vocês até puderem me dar uma seta, tipo “Ouça esse. Tenta pegar um livro desse. Faz um contato com esse, ou deixa que eles façam com você”, porque cada um faz do seu trabalho a sua arte. Acho que é mais sobre a maneira como se faz, do que esse lugar de que os artistas são pessoas especiais. Para mim, somos todos especiais. Ninguém não tem essa luz que pode iluminar a escuridão e iluminar a escuridão de quem tem do lado. Então, eu, enquanto artista que tô ali no centro do palco, com microfone na mão, com toda uma engenharia pra me tornar especial… Eu funciono de um jeito que mais me interessa ver do que ser visto, mais me interessa ser afetado do que afetar, é a minha maneira de viver isso. É um pouco padronizado, o artista quer sempre cantar cada vez pra mais gente, cada vez mais shows. Você vai perdendo um pouco de vista o olhar do outro, e isso eu não posso perder. Então toda vez que me vejo numa situação especial da vida como essa, de ter quatro shows. É um evento único no ano. Estou muito a fim de conhecer. 

Alexandra: Falando em Felicidade. Queria saber se essa forma de vida que você leva, mesmo sendo hoje um artista já bastante conhecido do público, tem mesmo a ver com o que você traz na canção.

Jeneci: Esses dias perguntaram pra mim, uma ótima pergunta: “Ei, Jeneci, felicidade é mesmo questão de ser? Você acha isso mesmo?”, nisso lembrei de um pensamento budista que fala que a gente deve ter uma felicidade absoluta pelo simples fato de estarmos vivos. Nesse sentido, as canções que componho, seja sozinho ou com parceiros, só tem lá o que eu acredito, não é sobre entretenimento. É sobre uma sinceridade, me vem até a palavra religiosa, no sentido samurai da coisa. É isso que me comove nas canções que me fizeram ser cantor. Não que só essas músicas sejam boas. Pra mim, nem existe música ruim. Existe só hora ruim de ouvir uma música. Então, eu me beneficio e sou muito grato. 

Marco Antônio: Entre Feito Pra Acabar e Guaia, observamos um amadurecimento na sua sonoridade, não só na parte musical, mas nos textos também. São três discos com um denominador comum, sua própria criação. Como se deu esse processo entre os discos? 

Jeneci: É sempre uma expansão, um retrato da expansão de consciência que eu vou tendo em cada fase da vida. No Feito Pra Acabar, o nome que você pode ver, feito pra acabar com o quê? Com aquela fase! Depois eu já deixei de ser aquilo, então se aplica bem o nome nesse sentido. Mas nem pensei nisso, foi um amigo meu que me disse esses dias e achei brilhante a percepção dele, ele disse: “A partir dali, você passou a ser outro”. E é um pouco isso, a permeabilidade de aos poucos ser convidado a transitar em ambientes muito diferentes, muito variados, tanto do ponto de vista social, quanto energético, de experimentações. Isso trouxe diferença de sonoridade. Quando eu fiz o De Graça eu pensei “Fiz o último disco ser nunca ter tomado um porre na minha vida”. O primeiro porre que tomei foi ouvindo Feito Pra Acabar com o Guilherme Arantes. Foi muito lindo esse dia, ele bem emocionado e eu também. Então, quando me dei conta de que logo viria o segundo disco para fazer, eu já estava buscando experimentar da vida várias coisas que nunca tinha vivido. Isso trouxe um outro foco de pensamento, outra outra sonoridade no caso do De Graça. No Guaia, sou eu indo morar no Rio de Janeiro, indo me entorpecer de pureza, de natureza, de autocuidado. Meus ajudantes lá de cima mandaram passar um cometa na minha frente, chamado Mana Bernardes, que é com quem eu tive minha filha Rara. Eu reconheço essa passagem dela na minha vida. Aí virei vegano, virei um cozinheiro, um bom cozinheiro. Não como farinha branca, nem açúcar, fritura, nada de proteína animal. Sei dos efeitos das coisas, passei a saber. O Guaia nasce nesse território até mais sensual, que é o do Rio de Janeiro. Ele tem isso, eu respondendo à vibração da cidade, à vida ao lado da Mana. Eu chamei o irmão dela para produzir o disco comigo, o Pedro Bernardes, um grande artista da música também. Então eu vou chegando nos mergulhos que geram novos discos, conforme minha vida vai ganhando novas dimensões. 

Eu tento fazer disso um retrato honesto de tudo. Já que somos uma máquina fotográfica de seis sentidos e, no meu caso, é muito bom poder fazer disso o meu próprio ganha pão, mas a minha maior intenção ao fazer isso é despertar isso no outro.

Maria Teresa: O seu último álbum foi lançado pouco antes da pandemia. Como ficou seu processo durante a pandemia? E os resultados desse processo criativo?

Jeneci: Na pandemia eu fiquei mais ativista do que artista. Fiquei perseguindo mais isso, a coisa das cestas básicas. O que eu fiz na pandemia além de um filho foi pensar “quer saber, vou fazer todas as etapas sozinho até o lançamento de uma música”, já que eu acho que isso também deve ser incentivado. E o que eu digo não tem nada a ver com o princípio da meritocracia. Eu acho que quando a gente se movimenta, a gente também atrai o movimento. Em algum ponto a gente pode causar o nosso fluxo, sair da inércia, ou do “e se isso? e se aquilo?”. Sair dessa armadilha também do ego. Então gravei, mixei e masterizei uma música. Nas últimas etapas, quando vi que o negócio realmente ia para o mundo eu pedi uma ajuda, mas minha intenção de ir até o fim…eu fui até quase o fim, pra fazer o que era possível pra mim na pandemia, que era do meu recanto gerar uma nova canção, gravar e lançar. E hoje em dia você faz, é muito bom. Com isso fiz o relançamento de Feito Pra Acabar (10 anos), em que tem essa música que abre e é Me Sinto Bem. Fiquei sem poder rodar o Guaia. Achei que mais gente ia escutar o Guaia, ele virou meu disco menos escutado. E agora já passou, ele já passou de mim. Agora é uma transição, a gente tem esses quatro shows aqui e o meu quinto show (em Belo Horizonte) é um novo show, que é o Caravana Sairé, que é um retorno meu, um encontro com a origem da sanfona. Afinal, é daí que vem minhas melodias.

Marco Antônio: De músico acompanhante você sai direto para artista solo. Você ainda vislumbra a voltar a colaborar como música na banda de artistas que já trabalhou? Ou teu processo criativo só te empurra nesse caminho de artista solo para ir se descobrindo cada vez mais?

Jeneci: Eu quero contar como foi o processo de eu sair do território da música em busca da palavra. Eu muito cedo tocando, com 15 anos, com Milionário e Zé Rico, com 17 já na banda do Chico César, viajando o mundo sem saber o que era passaporte. Depois do Chico comecei a tocar com a Vanessa da Mata, na primeira turnê dela. E aí nas passagens, eu aproveitava enquanto ela não vinha, e ficava no microfone dela, com uma imensidão de ninguém, para mim tinham milhares de pessoas. E eu ficava cantarolando algumas melodias que foram nascendo nessa época e que também geraram o Feito Pra Acabar, por exemplo Amado. Eu olhava, com aquela voz do microfone dela, soando gigante, aquele lugar imenso, ali eu já tive uma sensação se aquilo era bom ou não. E fui também agraciado pela vida. A vida nesse momento trouxe pra mim quem? Zé Miguel Wisnik, um patrono da palavra. E o Zé sacou em mim uma vontade muito grande de me aproximar da linguagem da canção. Não tem acaso, não têm coincidência. Quando eu tava interessado e precisando de um mestre para me conduzir, o Zé foi fundamental. Eu ficava mostrando pra ele  “Zé, essa melodia dá pra botar letra?” e ele me aconselhava. Até que uma ele falou que essa dá, chama Primeiro Fole, ela é muito linda, fala sobre a minha história em relação a canção. Aí eu saio dizendo que Amado é minha primeira canção. Mas na verdade é Primeiro Fole. E foi assim a transição. Eu fui querendo mais que as notas, eu fui querendo palavras.

 

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