Resquício qualquer de sobriedade, por Alisson Carvalho

Excelentíssimo senhor,

Dada a natureza de urgência do pedido, críamos na quebra dos protocolos padrões, sendo bem redundante, para a eficiência do fluxo do processo e saltamos grande parte das etapas burocráticas que validariam o nosso pedido. Cabe-nos lembrar à sua fragilizada memória de suidae sobre os riscos, previamente anunciados por Himmler antes do fatídico fato que mesmo hoje envergonha cada átomo humano.

Observando a civilidade escassa crescente, quase ausente, percebo que os grandes desastres começam com situações corriqueiras, quase insignificantes, fatos que passam despercebidos e que só se tornam colossais à medida que se espalham no boca a boca até penetrar os pensamentos. Tudo começa sempre com uma sensação, nada mais, uma mera sensação cuja clareza só surge quando a tragédia é ampliada, torna-se um desastre.

Observando os não-humanos enaltecerem diariamente o fardamento e a bandeira, dá para perceber o quão insignificantes somos. Afinal, reduzidos, deixamos de ser, tornamo-nos engrenagens da força ideológica. Nem percebemos o fenômeno “Sujeito Dominante Exemplar”  chegando aos poucos no nosso ideário, mas chegou e ficou. E, como tal, fez-se regra.

Discorrerei para ficar mais claro:

O “sujeito” deixou de ser tribo, portanto já não percebe o mundo com a óptica altruísta e comunitária como outrora faziam. Chamá-lo-ei de indivíduo, só por mera precaução, mais que por fatalismo. O “sujeito” atrairá os seus homólogos ou será por eles atraído, mas até aqui isso pouco importa, o problema maior decorre da criação dos guetos. E não me refiro ao protecionismo, mas às pequenas tribos que nutrirão pensamentos fascistas.

O “dominante” é mais uma instância que uma condição, destarte é produtor e produto da política, constructo do poder. E, como todo privilegiado, criará os meios necessários para a reprodução do status quo daquilo que considera condição, digo, da manutenção das relações de exploração, sejam elas quais forem.

O “exemplar” é aquilo que reforça o carácter social, pois deve servir de referência tanto aos demais membros da tribo quanto aos alienígenas. É por meio desse elemento que reforçam os códigos culturais e morais. Também é o terreno fértil para as filosofias e ideologias, principalmente as ortodoxias.

Imersa nessas tantas distorções e exageros avistamos a semente do pensamento eugenista germinando livremente sob a proteção dos símbolos metafísicos. Lembrar talvez seja o grande salto evolutivo que aparte os humanos dos demais mamíferos. Embora alguns dos elephantidae discordem com veemência dessa afirmação falaciosa e os delphinidae refutem todo esse tratado com facilidade.

Excelentíssimo, sua memória é um risco e realmente críamos na possibilidade de nos desculparmos com  as futuras gerações colocando a culpa nas Saccharomyces Cerevisiae ou nas Saccharomyces Uvarum pela nossa infeliz escolha. Contudo, vendo a sua terrível saudação ao Brilhante – o dejeto humano cujas mãos, venerada pelos ufanistas e rubras pelo sangue, tingiram a história da nação com fatos vergonhosos – percebo que um alienista não sanaria seu caráter, talvez seja mais aceitável um tratamento forense do que patologizar suas insanidades.

Perdão, a imprudência alheia é resultado da nossa própria negligência.

Quem sabe um resquício de civilidade, excelentíssimo, tenha restado nessa farsa que por força de hábito você chama de face. Ainda escuto os ecos e lamentos do bosque que nunca dorme e compreendo o perigo do poder na mão de sargentos e afins. A memória humana envergonha toda a espécie, dos horrores de Buchenwald aos campos de concentração de Fortaleza. A nobreza carece urgentemente de boas doses de sobriedade.

Foto: Victor Martins

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