A dor que emana das nossas orações

Espero ansiosamente pela divulgação do álbum “A cor da dor”, olho para a tela do celular e vejo a playlist pausada, sim uma playlist  com vários compositores brancos. Sinto-me constrangido diante da tela do PC olhando para o vídeo com as valsas de Possidônio Queiroz, havia algumas semanas que tinha esquecido de dar o play e escutar aquelas valsas, mas a facilidade do celular me levou direto à Europa, para o aplicativo que me entregava de bandeja os autores brancos. Eles sempre foram mais fáceis, mais acessíveis.

Quando li a letra do “ A cor da dor” senti um peso em cada verso, pois aquelas criações emanavam uma realidade nada poética e traduzia sim dor, muita dor, muitas dores, histórias e um legado que ficou tatuado na camada que nos reveste. Diante dos meus olhos, enquanto assistia pela centésima vez ao vídeo, um álbum misturando o clássico e o urbano, e com uma pegada do afrofuturismo.

O racismo, tema que costura as fibras para a inspiração desse trabalho, não é um fenômeno contemporâneo apenas, afinal ele foi sendo construído ao longo da história e é dessa forma que somos apresentados ao trabalho musical. Embora houvesse interesse em nos apagar, em nos esconder, em nos jogar para a margem, nós, povo preto, resistimos e não ficamos estagnados, pelo contrário, ocupamos espaços e incomodamos quem não nos tolera. É por isso que escuto, é por isso que aprecio esse trabalho, é exatamente para demarcar esse terreno que parece ser como a minha playlist de músicas eruditas: majoritariamente branca.

Perdido entre as páginas de Florestan Fernandes – que refletiu sobre a tal democracia racial, proposta por Gilberto Freyre, e interveio argumentando que não havia condições de igualdade que permitissem aos negros viver em igualdade, pois já foram submetidos a tantas violências, logo uma liberdade sem assistência era, na verdade, um abandono – eu cogito sobre a ilusão nutrida por alguns nessa tal meritocracia que não passa se uma fachada para esconder o racismo.

Um racismo que foi construído e reproduzido de modo severo, tanto que acabaram sustentando a ideia de substituição da mão de obra negra pela mão de obra dos europeus como abordou Lilia Schwarcz.

“A cor da dor” é um tratado, uma forma que Lucas Coimbra encontrou para mostrar que há vozes negras produzindo música erudita, com uma qualidade já vista em outros trabalhos o compositor une o seu talento aos do músico Cássio Carvalho e da voz de Gislene Daniela, que materializa toda essa construção.

As músicas seguem uma sequência que vai da constatação do sofrimento, com uma pegada histórica que remete aos genocídios cometidos ao longo da história contra o povo preto, passa pela violência simbólica que invizibiliza os corpos negros, mostrando o estado de anomia ao qual estamos imersos. Mostra também a força suprimida, mas que vibra sob a pele de cada um, quando, enfim, se clama, crava, grita pela equidade. E finaliza com uma oração mostrando que mesmo que a sociedade insista em camuflar o racismo, mesmo que a carne negra seja colocada em um lugar menos valoroso, há identidade, há vida, há afetos nesses corpos que são alvos do poder.

Impossível não fazer conexões com o livro de Mairton Celestino, “Batuque na Rua dos Negros: cultura e polícia na Teresina da segunda metade do século XIX”, quando lembramos da arquitetura higienista urbana. Em como os negros escravizados e libertos foram tentando sobreviver nesse lugar hostil que apartava a população pobre e preta. E mesmo com o esforço de tentar construir um lar, todas as manifestações e formas de existências da negritude eram coagidas por um aparato policial que impunha a ideologia das elites. A cidade era forçada a respirar dentro dessa sociedade escravista que proibia a performance dos corpos negros.

“A cor da dor” vibra dentro de nós, está presente em cada comunidade coagida, nos projetos higienistas da cidade, na formas como insistimos em reproduzir esses discursos racistas que, vez por outra, atingem alguns corpos periféricos e a comunidade ribeirinha com projetos de Lagoas isso e aquilo ou com desocupações por decisões unilaterais para criação de parques visando a construção de lazer de uma classe que pouco se importa com as comunidades.

Resistimos, mesmo que queiram nos apagar.

 

“Existe um Deus e ele é incolor
Não acredito que a minha cor
É capaz de morrer assim

Por engano muito infeliz

O sangue é sangue, mas a carne é negra
O corpo é corpo, mas a carne é negra
Não há pincel que mude essa peleja
Nem oração pra tal infeliz certeza”
(Oração – A cor da dor)

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