O filme piauiense A Cigana foi eleito pelo júri técnico o Melhor Longa Brasileiro do 14º Festival Internacional Rio LGBTQIA+, realizado na noite desta quarta-feira (9), no Rio de Janeiro. Escrito e dirigido por Thiago Furtado, o longa-metragem documental apresenta o compositor e intérprete Benício Bem, artista piauiense com profunda ligação com a cultura cigana e a cultura popular nordestina. O filme propõe uma verdadeira viagem cósmica em busca de reconhecimento, refletindo sobre identidade, espiritualidade e o estigma do chamado “artista local”.
A Cigana conquistou o reconhecimento do júri “pela força dramática do personagem e sua inserção social; pelo ineditismo da forma de incorporar-se na sociedade naturalmente; e pela linguagem cinematográfica em que os limites do documentário e da ficção se mesclam com sensibilidade e competência”.
No decorrer da narrativa, o público é conduzido à localidade de Poção, no interior do município de Brasileira (PI), onde Benício cresceu e teve seus primeiros contatos com o povo cigano — influência marcante em sua arte. O filme apresenta depoimentos de familiares e amigos, como o humorista João Cláudio Moreno, além de artistas como Solange Almeida e Chico César. Com 1h15 de duração, o longa mergulha na trajetória de um artista múltiplo, revelando sua profundidade e complexidade.
Realizado ao longo de sete anos de forma colaborativa e independente, o projeto contou com a parceria da Madre Filmes e com apoio de parceiros e recursos do edital SIEC e da Lei Paulo Gustavo, por meio da Secretaria de Cultura do Estado do Piauí (Secult).
A ideia do filme surgiu após o diretor Thiago Furtado assistir a um vídeo no YouTube em que Benício aparecia ao lado de João Cláudio Moreno. Movido, num primeiro momento, por um olhar atravessado por preconceito, ele conta que rapidamente teve sua percepção transformada ao ouvir Benício falar. “Essa pessoa precisa de um filme para contar a história dela”, pensou. O encantamento foi imediato, não apenas pelo carisma e presença de Benício, mas também pela força de sua trajetória. Assim nasceu o desejo de registrar, com a linguagem do cinema, a vida de um personagem cuja potência ultrapassa qualquer estereótipo.

“A gente traz uma luz sobre gênero, diversidade, religiosidade, cultura cigana, cultura nordestina e piauiense, sobre o interior do Piauí, sobre Teresina e as dinâmicas que atravessam a vida do Benício. Isso, para a gente, é muito importante”, destaca o diretor Thiago Furtado.
O produtor executivo do filme, Italo Damasceno, celebrou a conquista destacando sua dimensão coletiva: “Esse prêmio é uma vitória de todos que lutam para que o audiovisual no Piauí seja tratado com atenção e respeito pelo poder público. Dedicamos o prêmio ao Benício Bem e a todos os artistas ditos locais, que seguem resistindo mesmo sem o devido reconhecimento”, escreveu nas redes sociais.
Para Benício Bem, protagonizar o documentário é uma chance de mostrar uma faceta sua que o grande público muitas vezes desconhece. “A proposta é justamente tirar essa imagem caricata. O Benício Bem não é só a caricatura — é cultura popular, é misticismo, é questionamento social. Não é apenas o figurino ou o humor, é uma linguagem que também provoca reflexão”, afirma o artista.

O longa também reflete sobre o estigma do “artista local” e a invisibilização de criadores fora dos grandes centros. Benício denuncia a desvalorização recorrente em sua cidade, Teresina, tanto em relação à diversidade de gênero quanto à produção artística autoral. “O artista autoral em Teresina é excluído dos grandes eventos, das grades de programação que pagam cachês altos. Ele é ignorado, invisibilizado”, relata. Para ele, resistir com arte na capital piauiense é um ato de coragem diária.
Entre os principais desafios da equipe esteve a definição da linguagem do filme. Como primeiro longa sobre Benício Bem, o diretor quis fugir do formato documental tradicional. A busca era por uma narrativa que fosse acessível, mas ao mesmo tempo sensível à complexidade do personagem. “Queríamos contar essa história com emoção, homenagear a cultura piauiense e refletir sobre a desvalorização do artista local. Encontrar esse tom foi o nosso maior desafio”, explica Furtado.
A Cigana teve sua estreia em junho na Parada de Cinema. No Rio de Janeir foi a segunda exibição pública do longa. Em agosto, o filme segue para o Festival Guarnicê, em São Luís (MA), um dos mais tradicionais do Nordeste.
Benício revelou que assistiu ao filme pela primeira vez já na estreia, junto ao público, e se emocionou com o resultado. “Esse prêmio veio nos fortalecer. Foi uma injeção de ânimo, uma prova de que estamos no caminho certo. Que fazer arte de verdade, mesmo com recursos próprios ou editais, vale a pena”, comemora.
O diretor também comemorou a premiação e ressaltou que, apesar do orçamento reduzido, o filme alcançou um alto padrão técnico. “Foi uma surpresa maravilhosa. Esse reconhecimento foi pela excelência da narrativa, da montagem, da fotografia. É um filme que celebra a biografia de uma pessoa quase desconhecida, mas de uma importância imensa”, finaliza Thiago Furtado.