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Conheçam o curta “Torquato Neto em todo lugar” de Elara Moretz-Sohn

Sob o sol quente de Teresina, onde o nome de Torquato Neto ecoa em ruas, bustos e memoriais, mas sua obra permanece esquecida por muitos, nasce o curta-metragem Torquato Neto em todo lugar. O filme é um trabalho de conclusão de curso da estudante Elara Moretz-Sohn, do curso de Letras Português da UFPI, sob orientação da professora Jasmine Malta. Mais que uma produção acadêmica, o projeto é uma imersão sensível na poesia e na presença invisível do poeta tropicalista, cuja arte insiste em resistir ao apagamento simbólico da cidade que o viu nascer. Teresina é palco e personagem: uma cidade em transe, atravessada pela poesia de Torquato, que invade o cotidiano e clama por memória.

A criação do curta, é resultado de um processo de pesquisa em Literatura, Memória, Cinema e Cultura Piauiense, o curta propõe um reencontro com um Torquato essencialmente vivo, cuja produção artística segue pulsando — ainda que à margem. Ao dar vida às palavras do poeta através da linguagem audiovisual, o filme se apresenta como ferramenta potente para uso em salas de aula e também como obra para circular em festivais, promovendo debates sobre literatura e arte em diálogo com o cinema. A proposta é clara: redescobrir Torquato Neto para além da cajuína e dos monumentos, resgatando o homem, o artista, e sua contribuição profunda à cultura brasileira.

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Elara ressalta, que escolheu o formato audiovisual desde o início do curso, inspirado por um curso de roteiro e pela disciplina de literatura e cultura piauiense. “A ideia surgiu da frase “Torquato Neto não morreu” e amadureceu ao longo da graduação. O filme parte de uma inquietação: embora o nome de Torquato esteja presente em monumentos e espaços públicos de Teresina, sua obra segue desconhecida. O trabalho questiona o apagamento da produção artística de Torquato, muitas vezes ofuscada por mitificações em torno da morte e da figura melancólica do artista. Para ela, ‘um artista sem a arte se transmuta senão em esquecimento’, e essa ausência de memória sobre o que Torquato realmente produziu é o centro da crítica expressa no trabalho” afirma Elara.

“O curta-metragem surge da necessidade de voltar a falar sobre Torquato Neto, não apenas por falar, mas como um gesto urgente de resgate de sua poesia. A ideia central do filme parte de uma premissa insólita: entre os dias 9 e 10 de novembro, todos em Teresina nascem e morrem Torquato Neto. Nesse intervalo de 24 horas, a cidade desperta o poeta e sua poesia invade o cotidiano de forma espontânea e inesperada. A narrativa se constrói a partir de cenas corriqueiras — uma sala de aula, um bar, um casamento, uma festa, um ponto de metrô —, onde os personagens expressam falas que são, na verdade, poemas e textos de Torquato. Cada diálogo do filme é composto por sua obra, cuidadosamente selecionada e adaptada para o roteiro. O resultado é um efeito de estranhamento, mas ao mesmo tempo de naturalidade, como se as palavras do poeta sempre estivessem ali, presentes na vida comum”, pontua.

Ícaro Uther é Filmmaker, designer, fotógrafo, escritor, ainda se considera um aspirante a cineasta. No filme assina a direção de fotografia, montagem, edição e colorização. Segundo ele participar do projeto representa um importante ganho para o conhecimento.  “Torquato, além de ser uma obra muito original e vanguardista, é também experimentalista. Esta característica foi a que trouxe maiores possibilidades para um laboratório visual no filme”, afirma. 

“Na primeira reunião de apresentação do projeto, antes mesmo de imaginarmos um cronograma para a pré-produção, saímos encantados com o que a Elara nos apresentou. Percebemos quão rico era o material que ela tinha desenvolvido e tivemos uma certeza: o cinema autoral piauiense nos presenteia com gratas surpresas”, destaca Ícaro.

Apaixonada pela vida e obra de Torquato, Elara conta que precisou fazer um jogo de cintura para aproveitar a essência do material. “Eu já conhecia algumas coisas do Torquato, evidentemente, mas descobri muitas outras ao longo do processo”, relata Elara Moretz-Sohn. Para a construção do curta, ela trabalhou principalmente com dois livros: O Fato e a Coisa, reunião póstuma de poemas já pré-organizados pelo autor, e Os Últimos Dias de Paupéria, que reúne textos diversos, como ensaios, letras de música e fotografias. “O Fato e a Coisa é o meu principal. Os Últimos Dias de Paupéria uso mais para compreender a escrita do Torquato que é muito boa e extrair algumas letras”, explica.

A pesquisadora destaca o desafio de adaptar os poemas para cenas curtas e dinâmicas, já que muitos textos de Torquato são longos. “Ele é um poeta genial, tem uma construção poética bonita, instigante e que não é conhecida. Todo mundo conhece Cogito, mas Torquato não é só isso”, diz. Elara reforça a importância de valorizar a poesia e o estilo único do autor, marcado por forte visualidade e simbolismo. “Quando você começa a ler, não tem como não reconhecer: isso aqui é dele. E aí fica a pergunta: por que a gente não está lendo Torquato? A gente precisa parar de só celebrar a morte dele e voltar à arte que ele produziu. O Nosferatu no Brasil, o vampiro da vermelha, ele não é só esse vampirão. Ele precisa ser valorizado enquanto multiartista e para isso a gente precisa voltar à arte dele”, ressalta.

“A primeira coisa que me pegou no Torquato foi a genialidade dele, a forma como ele constrói a poesia”, afirma Elara ao refletir sobre o impacto do autor em seu processo criativo. Para ela, embora Torquato seja reconhecido como uma das principais cabeças da Tropicália, essa associação tornou-se quase um imaginário consolidado — algo que, com o tempo, acabou reduzindo a complexidade da sua obra a um rótulo.

Elara observa que a Tropicália foi uma fase breve e que, apesar da importância de Torquato nesse movimento, sua produção vai muito além disso. “A gente tem essa carência de referências, e se apega a qualquer figura que parece ter relações com pessoas admiradas nacionalmente, como Caetano, Gil, Betânia, Gal. Mas acho que vai além disso”, pontua. Ela propõe uma revisão desse olhar cristalizado, buscando valorizar a obra do poeta por sua originalidade e potência própria, para além da mitificação associada a nomes consagrados.

Ao retratar o pertencimento, a pesquisadora destaca que um dos principais objetivos do curta foi construir uma relação entre Teresina e Torquato Neto, inserindo sua poesia em espaços centrais da cidade, como a Praça Pedro II, o encontro dos rios e a estação de metrô. Segundo ela, muitas pessoas que assistem ao filme se surpreendem ao reconhecer a beleza da cidade, frequentemente ofuscada pela rotina e pelo discurso de que Teresina é feia. “A poesia do Torquato cria esse resgate dos nossos espaços, e esses espaços, por sua vez, resgatam a poesia dele”, afirma. Para Elara, esse diálogo entre texto e paisagem reconstrói uma nova percepção sobre a cidade e seus significados, promovendo um resgate mútuo entre o poeta e Teresina.

A pesquisadora explica que todos os diálogos e músicas do curta são composições de Torquato Neto, compondo uma verdadeira profusão de referências à sua obra. O filme parte de uma perspectiva estética alinhada ao próprio pensamento artístico do poeta, especialmente sua visão sobre o cinema experimental, como visto em Terror da Vermelha, do qual o curta traz referências diretas, como cenas com placas e elementos visuais deslocados. A proposta é retratar Torquato não apenas como poeta, mas como multiartista, guiando a narrativa por meio de uma pesquisa profunda sobre sua produção e concepção de arte.

“Então, só reforçando, o nosso filme é um filme experimental, ele é parte do cinema experimental, que era um cinema que o Torquato defendia, sobre o qual eu tenho muita afinidade também. A gente fez um filme de guerrilha, com baixo orçamento, um sonho. E atores que não são atores profissionais, sabe? Assim como a gente vê No Terror da Vermelha, a gente realmente faz um resgate dessas referências do Torquato músico, letrista, do poeta, do cineasta, também ali do crítico e de alguns traços da vida do próprio Torquato, né? As referências que a gente traz ali ao casamento, né? A relação boêmia também. Então, o filme, ele é realmente, como eu falei, essa profusão de referências. Da arte do Torquato, porque a proposta é essa, é resgatar a poesia e a arte do Torquato Neto”, afirma.

O impacto cultural de Torquato Neto, é indescritível, Elara afirma que resgatar sua poesia é também resgatar uma das figuras mais emblemáticas da cultura piauiense, especialmente de Teresina. Para ela, o curta busca dar novo significado a esse ícone, indo além da imagem mitificada do “vampiro da vermelha” e aproximando a juventude de um artista que precisa ser lido e compreendido. Elara defende que há uma fragilidade no acesso à própria cultura no Piauí, com jovens que crescem sem referências não por falta delas, mas por ausência de visibilidade. Mostrar a obra de Torquato, nesse sentido, é um ato de reconstrução de identidade cultural, de valorização dos artistas locais e de construção de uma memória que ainda é negligenciada.

Homenagear um grande artista, in memoriam, provoca algumas especulações sobre o que o homenageado poderia achar em vida do trabalho desenvolvido. Elara afirma considerar inadequado imaginar o que o autor pensaria. “Confesso que tenho um pouco de questão com perguntas desse tipo, na mesma linha de ‘o que o autor quis dizer’. Eu não sou o autor”, diz. Para ela, trata-se de uma interpretação pessoal que não pode assumir a voz de Torquato. Ainda assim, expressa o desejo de que, onde quer que ele esteja, esse resgate da sua poesia possa representar um gesto de reconhecimento: “Ah, finalmente estão lendo a minha poesia”.

Elara relata que uma das falas mais marcantes sobre o curta veio após a primeira exibição, quando o diretor de fotografia, Ícaro, comentou que talvez eles tivessem alcançado, com Torquato Neto em todo lugar, em lugar nenhum, um lugar que o próprio Torquato gostaria de ter chegado com sua arte. Esse reconhecimento emocionou Elara, que ao longo do processo lidou com muitas inseguranças e dilemas, especialmente por trabalhar com a memória de um artista que cometeu suicídio e cuja obra, em parte, não foi publicada em vida. Mas, segundo ela, o respeito coletivo da equipe pela obra de Torquato foi o que guiou todo o trabalho, permitindo que o filme fosse, acima de tudo, um gesto sensível e cuidadoso de resgate da poesia do poeta piauiense.

Fazer um filme sobre Torquato é também contar um pouco do Piauí que não cabe nos clichês. Para Ícaro o Piauí mostrado nessa obra representa um simbolismo universal. “Um Piauí cru e romântico é apresentado ao espectador. Todos os Torquatos sentem dores palpáveis, até mesmo universais, se consideramos todas as ligações que são feitas pelo roteiro através das cenas”, destaca.

 Elara conta que o curta foi realizado majoritariamente de forma voluntária, com apoio e patrocínios pontuais, mas contando principalmente com o engajamento de amigos e atores que participaram por carinho ao projeto. “Embora alguns nomes do elenco sejam profissionais, como Marcel e AJosé, a maioria integra o filme por envolvimento afetivo e entusiasmo com a proposta. Para Elara, esse comprometimento coletivo é um dos aspectos mais emocionantes da obra, que foi construída como um verdadeiro filme de guerrilha, com orçamento reduzido, mas movido por sonho, dedicação e afeto — elementos que, segundo ela, garantiram a qualidade e a força do curta”, disse.

FICHA TÉCNICA

TORQUATO NETO EM TODO LUGAR E EM LUGAR NENHUM

Curta-metragem – 20 minutos e 7 segundos

Roteiro, direção, direção de arte e produção executiva – Elara A. Moretz-Sohn;

Direção de fotografia, operador de câmera, montagem e edição – Ícaro Uther;

Direção de elenco e assistente de produção – Ajosé Fontinelle;

Fotografia still, making of e assistente de produção – Raynara de Castro

Operador de drone, segundo operador de câmera e assistente de produção – Rodrigo Alves;

Som direto – Naira Cibele;

Som direto, mixagem e desenho de som – Guilherme Oliveira;

Orientação e produção executiva – Jasmine Malta;

Cenografia e produção executiva – Rafaela Lopes;

Cenografia – Isaac Moretz-Sohn

Cenografia – Maria Heloá Carvalho

Finalização – 1150 PRODUÇÕES

Elenco – Mariana Cortez; Joseane Moura; Ana Luísa Nunes; João Paulo Vieira; Alisson Carvalho; Davi Mendes; Elara Moretz-Sohn; Ajosé Fontinelle; Izabela Mourão; Marcel Julian; Bianca Maria; Ruanna Sabrina; Maria Luiza Costa; Maria Clara Fernandes; Rielli Carvalho; Inaê Torres; Mariana Medeiros; Lunna Cantalice; Maria Luísa Valledor; Quirino Nunes; Andrea Kiss; Carolina de Aquino; Tiago Souza; Larissa Rodrigues; Pedro Silva; Ayrton de Souza; José Francisco Silva; Suzana Borges; Tayla Siqueira; Maria Clara dos Santos; Caio César; Rafaela Lopes; Jasmine Malta; Rodrigo Alves; Naira Cibele; Raynara de Castro.

Trilha sonora: Let’s play that (Intérprete: Jards Macalé; Composição: Jards Macalé (música)/ Torquato Neto (letra);

Geleia Geral – Intérprete: Gilberto Gil; Composição: Gilberto Gil e Torquato Neto;

A coisa mais linda que existe – Intérprete: Gal Costa; Composição: Gilberto Gil e Torquato Neto;

Mamãe Coragem – Intérprete: Suzana Borges; Composição: Caetano Veloso e Torquato Neto;

Pra dizer adeus – Intérprete: Ava Rocha; Composição: Edu Lobo e Torquato Neto

Trilha complementar: Envato Elements.

Realização – 1150 PRODUÇÕES e Universidade Federal do Piauí

Apoio – Coordenação de Letras Vernáculas (CLV); Floricultura Li; Graficon; Andréia Galvão Advocacia**; Livraria Entrelivros

Patrocínio – Instituto Dom Barreto; Editora Nova Aliança; Geleia Total.

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