Caixas espalhadas, cabos que serpenteiam pelo chão e o constante som de vozes dando ordens, construindo mundos. Sem dúvidas uma atmosfera característica de Hollywood: diretores com bonés e olhares concentrados, câmeras que parecem extensões de seus corpos, produtores com pastas repletas de informações, operadores de som com fones que isolam tudo em busca de captar a essência da cena. O aroma de café fresco, sempre presente, se misturando ao pó dos equipamentos antigos e ao suor do esforço criativo. Vozes de autoridade ecoando, além de posturas que desenham hierarquias invisíveis.
Ao longo de várias décadas, o audiovisual brasileiro e, consequentemente, piauiense construíram um espaço preponderantemente masculino. Expressões como “não pode” ou “não é lugar de mulher” funcionavam como leis não escritas. Tais barreiras invisíveis, porém palpáveis, limitavam o acesso e a ascensão delas em funções técnicas e criativas. No entanto, os tempos mudam, e com eles, as narrativas se transformam. Hoje, o set também é ocupado por mulheres que não chegam de forma discreta, tampouco pedindo licença. Elas entram com determinação estampada no rosto, mochilas nas costas carregando sonhos e câmeras nas mãos como instrumentos de criação. Suas vozes, antes abafadas pelo burburinho de um ambiente hostil, agora se fazem ouvir com força e clareza. Reivindicando e assumindo o espaço que sempre lhes foi de direito.

Um cinema que não apenas registra, mas ressignifica. Nele, mulheres como Milena Rocha e Tássia Araújo não são apenas cineastas: são arquitetas de imaginários, tecelãs de memórias que desafiam o silêncio imposto pelos séculos. Com notável competência, resiliência e uma confiança que só quem domina profundamente seu ofício possui, elas personificam uma mudança que ecoa além das telas. Natural de Santa Cruz dos Milagres (PI), Rocha é jornalista, mestranda em Artes na UFRB e diretora da Cocais Filmes. Reconhecida como uma das vozes do cinema piauiense contemporâneo, seus trabalhos se destacam por explorar temas como memória, identidade e território. Por sua vez, Araújo, também jornalista, cineasta e artista visual teresinense, dedica-se a projetos que abordam memória, identidade e vivências LGBTQIAPN+. Ambas não somente integram as equipes, entretanto desafiam ativamente expectativas arcaicas, confrontando olhares que ainda medem, piadas que tentam diminuir e vozes que insistem em interromper.
Em entrevista à Geleia Total, Milena Rocha, autora do documentário musical “Boi Romeiro”, que aborda memória, luto, fé e devoção por meio de toadas tradicionais, e Tássia Araújo, diretora e roteirista do curta-metragem “Boi de Salto”, que explora o imaginário popular do Piauí ao construir uma fábula sobre liberdade, resistência e reinvenção das tradições. Exemplificam como cada mulher a qual atua nesse meio representa uma pequena revolução. Elas desafiam barreiras, quebram estereótipos e transformam o ambiente com sua presença determinada. O cinema piauiense, ainda em desenvolvimento, traz a promessa e o desafio de se firmar como um espaço onde essas vozes possam ressoar com mais força e equidade. “O Piauí, por estar construindo sua indústria, é um ambiente propício para crescermos de forma coletiva e inclusiva. Estamos pensando em produções que priorizem a acessibilidade e a representatividade, com diversidade étnico-racial em papéis que superem estereótipos e subalternização”, ressalta Milena. Para ela, a televisão cumpriu um papel nesse sentido, ainda que de modo limitado. Cabe ao cinema, portanto, assumir a liderança na proposição de novas narrativas.

No cenário audiovisual do Piauí, um movimento discreto e, ao mesmo tempo, potente vem reescrevendo narrativas. De fato, o decurso das mulheres nas telas locais não é concessão, é conquista. Palavra por palavra, frame a frame, elas vêm desenhando um novo mapa de representatividade, demonstrando que talento não tem gênero e que excelência técnica se constrói com mérito e trabalho árduo. Tássia, voz atenta nesse processo, observa que a mudança ainda avança a passos lentos, porém consistentes. “Nos últimos cinco anos, as mulheres conquistaram um espaço novo diante das câmeras. Antes, aparecia quase sempre associada ao sofrimento; hoje já é retratada como uma voz de empoderamento. Mas, quando se observa quem está por trás das câmeras, o cenário permanece desigual”. Ela ressalta ainda que a quantidade de mulheres diretoras e roteiristas é reduzida, e em cargos técnicos, como na direção de fotografia, quase não aparecem.
“O cinema continua sendo um espaço dominado por homens, tidos como “naturalmente” mais habilidosos nessas áreas, o que acaba limitando a força e a presença feminina na criação audiovisual”, completa.
Não se trata de um conflito aberto, porém de uma resistência diária e constante. Nos sets de filmagem, anteriormente reinos por predominância masculinos, um movimento sutil — porém firme e constante — vai abrindo espaço para a diversidade. Quando esse equilíbrio finalmente se instala, o cinema respira diferente: as cores ganham intensidade, os detalhes emergem com profundidade e histórias passam a ecoar vozes antes abafadas. Tais transformações não surgem para provar um ponto, porém criar universos inteiros. Por meio das lentes, o mundo se revela reconfigurado por olhares que enxergam além do óbvio. Quantas luzes diferentes deixaram de iluminar uma cena? Quantos enquadramentos ousados nunca vieram à tona? Quantas histórias foram contadas apenas por uma metade do mundo? A câmera, que deveria ser um instrumento de pluralidade, muitas vezes repete um mesmo olhar e com isso perde nuances, profundidade e verdade. Como pontua Milena, é crucial questionar: “quem ocupa esses espaços? Os realizadores periféricos conseguem acessar essa indústria que está sendo criada? O interior do estado está descentralizado ou a capital continua reinando absoluta?” São perguntas que moldam o ecossistema cinematográfico, desafiando estruturas e propondo um fazer artístico mais democrático. “Eu boto muita fé, viu?”, ressalta otimista.

Aos poucos, o cinema deixa de ser monopólio para se tornar território de todos: um lugar onde diferentes sotaques, vivências e olhares se encontram para contar histórias as quais realmente importam. À vista disso, de modo silencioso, resistimos e criamos. Segundo Tássia, com “Boi de Salto”, a intenção foi trazer para as telas pessoas e histórias que raramente aparecem no cinema nacional. “Ao apresentar personagens que fogem do ‘padrão’, abrimos espaço para que mais pessoas se reconheçam e se sintam parte. Isso fortalece a diversidade e dá voz a quem sempre esteve à margem”, destaca. Nesse novo mapa, desenhado por mãos que antes foram silenciadas, cada filme é uma semente pequena, porém capaz de romper o asfalto e florescer onde menos se espera. Em cada avanço as mulheres vão ocupando não apenas as telas, assim como também os sets de filmagem, as salas de edição, os debates sobre linguagem e estética. “Foram doze anos de pesquisa até chegar em “Boi de Salto”, passei muito tempo observando esse universo. O salto entra como um gesto de ruptura. Enquanto diretora e roteirista, Araújo reflete que a cultura do machismo é muito presente em nossa sociedade. Para ela, o salto representa a abertura de novas possibilidades e a chance de explorar outras tradições. “Por isso criei o “bumba-meu-vogue”: uma dança que não apaga o tradicional, mas que o captura e ressignifica, trazendo elementos da ballroom e marcando o rompimento com as normas de gênero e comportamento”, acrescenta. Assim, sua presença é um grito silencioso contra os paradigmas antiquados que tentam restringir sua atuação. As mulheres não apenas ocupam espaço; elas reescrevem a narrativa sobre o que significa ser competente e resiliente. Cada uma delas traz consigo uma armadura invisível, uma força que transcende o talento técnico.
No jogo de câmeras, ser boa é apenas o ponto de partida. O real desafio reside em se mover com agilidade, eficiência e paciência. São pequenas batalhas travadas no silêncio da mente e, por extensão, uma guerra interna contra a dúvida e a insegurança. Cada movimento exige coragem: rir das piadas sem graça, levantar a voz quando necessário e se afirmar em espaços originalmente moldados para outras narrativas. Assim, elas não só afirmam seu direito de ocupar, como também abrem caminho para que outras mulheres possam ingressar nesse universo. De acordo com Milena, filmar em locações de sua origem confere um significado profundo à obra, evocando memórias que tornam a experiência intensamente pessoal. “A Sala dos Milagres, um dos locais onde gravamos, foi um lugar onde li cartas, organizei pedidos e ajudei na organização e limpeza”, relata. Ela observa que há um espaço em “Boi Romeiro” dedicado à evocação de uma memória anterior a todos os presentes em cena e na equipe. “Seguimos a toada do boi, que parte da redenção na Vila Jerusalém até Santa Cruz. E nessa estrada, muitas coisas vão acontecendo”. Contudo, cada vez que uma mulher ajusta um foco, comanda uma equipe ou segura uma câmera pesada com naturalidade, um paradigma se rompe. São raízes plantadas para um futuro em que mais mulheres poderão caminhar sem pedir permissão, onde a eficiência não será confundida com frieza e a paciência será vista como estratégia, não como passividade.

Em um cenário cinematográfico repleto de desafios, os cineastas independentes erguem suas câmeras com coragem e paixão. As barreiras são muitas: desde a captação de recursos até a distribuição dos filmes. Como destacado por Tássia Araújo, cineasta e artista visual, a ausência de cursos de longa duração no Piauí dificulta a profissionalização do setor. As iniciativas independentes frequentemente dependem de leis de incentivo, como a Lei Rouanet, que se tornaram fundamentais para a viabilidade de muitos projetos. “Existem formações curtas, que auxiliam, mas ainda falta um espaço mais amplo, onde seja possível aprofundar narrativas, técnicas e, principalmente, repertório, algo que considero essencial para a formação de qualquer artista”. Conforme Milena, mestranda em Artes na UFRB e diretora da Cocais Filmes o Piauí ainda não possui uma indústria cinematográfica consolidada, diferentemente de estados nordestinos como Ceará, Bahia e Pernambuco, que são referências nesse setor devido a iniciativas como escolas de cinema públicas e metodologias de inserção no mercado.
“Quando eu vou com uma equipe de cinema para a minha cidade, eu digo: ‘Gente, aqui tem cenários muito massas para pensar em inúmeros filmes. Aqui tem uma pequena rede de hotel porque tem Romaria’. Penso nisso da mesma forma que Dedé Rodrigues realiza seus filmes em Sussuapara, Picos: eu produzo os meus em Santa Cruz, Teresina. É uma maneira de mostrar ao mundo que temos locações bonitas e espaços adequados para desenvolver diversas narrativas”.
Para que o audiovisual independente continue a evoluir e a tocar corações, é imprescindível o apoio de políticas públicas, incentivos e a valorização do cinema independente como uma expressão cultural vital. Como enfatizado, a arte cinematográfica não é somente entretenimento, mas uma expressão cultural vital que molda o imaginário coletivo e ecoa através das gerações. Cada filme carrega em si a semente de novas perspectivas, vozes autênticas e narrativas que desafiam o convencional. De acordo com Milena no mundo do esporte, há bolsas destinadas a atletas. De maneira semelhante, no cinema e nas artes, poderiam ser implementadas bolsas para artistas. “Por exemplo, poderia estabelecer-se: ‘Neste ano, vamos investir em dez projetos de produção de longas-metragens ou séries conduzidas por mulheres’. Além disso, haveriam recursos menores voltados para curtas-metragens. Assim, é viável capacitar profissionais para atuar nessas áreas”.
Ela ainda ressaltou que, em contextos onde não há uma escola de cinema ou formação sistemática, esse tipo de bolsa de estímulo pode ser uma alternativa, mantendo as pessoas produtivas em suas áreas de atuação. E acrescenta que um dos desafios diz respeito à preservação do que já foi produzido. “Existem muitos filmes realizados no estado, mas não há uma cinemateca para consulta e acesso a esse material. Assim como, quando se busca um arquivo específico de determinado ano ou cineasta, não há um local centralizado para isso. Cada pessoa mantém seus próprios acervos de forma particular, sem um espaço dedicado ao cuidado e à preservação adequada desses materiais”, explica.

Em Teresina, o audiovisual ainda dança ao som de vozes masculinas. Tássia revela: poucas mulheres são reconhecidas como referências, sufocadas pela desconfiança e escassez de oportunidades. “Mesmo na publicidade, onde as oportunidades são mais numerosas, é incomum encontrar mulheres atuando como diretoras, e mais raro ainda vê-las como protagonistas de suas próprias histórias. Contudo, entre as sombras, brilham estrelas como Dácia Ibiapina e Karla Holanda, cujo talento ecoou além das fronteiras piauienses”. Celebrá-las é um ato de rebeldia criativa no qual semeia um futuro onde o mérito, não o gênero, defina quem conta nossas histórias. A transformação social começa quando valorizamos quem ousa narrar.