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A Vida Contida, por AJosé

José Afonso de Araújo Lima e Ajosé Fontinelle, 30 anos depois, em 2025

A José Afonso de Araújo Lima

(In Memoriam)

20h05

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Teatro vazio. Contração facial. Dentes triturando dentes. Língua pressionada contra a abóbada palatina. 

Teatro vazio. Taquicardia. Sangue cavalgando velozmente  em sentido contrário, dos ventrículos para os átrios. Câmaras cardíacas contraindo-se e se dilatando, alternadamente, 140 vezes por minuto. 

Teatro vazio. Cefaleia. Trombose venal. Prodigiosa pressão intracraniana. Sombras, tal qual fantasmas, invadindo o palco. Braços e pernas indolentes. Inchaço cerebral. Sangue umedecendo o subaracnóide.

Teatro vazio. Onde a família? Onde os amigos? Onde o burburinho de quando rebenta a fatídica notícia? Onde o vinho de outrora? Onde os cupins em guerra? Onde o itararé dos desvalidos? 

Teatro vazio. Pedro II banhada em estranha substância aquosa alcalina. Quatro de setembro maçante. O badaladal de São Benedito é presságio. Há uma tintura preta anuviando a escola de Gomes Campos. De um extraordinário mastro de cocanha principia uma lona encarnada. Ao meio-dia é toda a gente vermelha. De uma vermelhidão sobrenatural. Um deslumbramento só. Teresina tenebrosa.

Teatro Vazio. Os refletores não ardem. Proscênio precipício. No auditório, aos pares, criaturas xipófagas protagonizam o maravilhoso descuido da criação. Quem parasita de quem? Aleijados, estropiados de toda natureza de imperfeição, amaldiçoam as negligências do criador.

Teatro vazio. As águas do Parnaíba invadem o camarim principal. A maquiagem rubra agora é sangue esquivo – avançando violentamente. Em poucos minutos, umidade em todas os catinhos do complexo cultural. 

Teatro vazio. Aeroporto interditado. Magníficas nuvens derramadeiras repousam, há sete horas, sobre a pista de rolamento. Entre um clarão e outro a excêntrica ausência de trovão. 

Teatro vazio. Cidade vazia. A gente vazia. Cristais de gelo oprimem o Troca-troca.  A prefeitura, engolida por uma cratera, é apenas vestígio. Na Praça Marechal Deodoro da Fonseca há uma bandeira diáfana e tímida desafiando a inexistência de Zéfiro. O marco zero, cravado por Saraiva em 1850, assiste ao espetáculo de sons, cores, perfumes e dor. Prostitutas, sibilas e mendigos amaldiçoam Nossa Senhora do Amparo. 

Homenagem concedida pela Fundação Quixote e pela UFPI, durante o Salipi 2025.

21h04

Hospital Getúlio Vargas. Lamentações. Súplicas. Aflição. O pesadelo é substituído pelo pesadelo. Jeosá desmaiara nos primeiros minutos do espetáculo. Meses de ensaio. Correria-correria danada. Despertara na enfermaria. De instante em instante recebia a visita de uma sombra. Um gigante quietinho diante da cama. Sentia-lhe as mãos passeando pelo corpo. A angústia, substituída pelo prazer, era drenada pela criatura. Por mais que se esforçasse, tornava-se impossível para o artista identificar o benfeitor. O borrão de gente entrava e saía do quarto quando bem entendia. Nenhuma palavra. Apenas o toque generoso. A calmaria que o acompanhava sempre.

Naqueles momentos lembrava-se de sua primeira visita ao Teatro do Boi. Assistira, na ocasião, ao espetáculo A Guerra dos Cupins. Antigo matadouro municipal, o prédio fora construído em 1928. Anfrísio Lobão era o prefeito de Teresina, na época. A carnificina substituída, 59 anos depois, por oficinas, cursos e apresentações das mais diversas manifestações artísticas, ainda nos envolvia a todos, enquanto apanhadores do sangue e da dor de tantos bichos sacrificados ali. 

Estreara, aos 16 anos, naquele palco italiano. 34 espectadores dispersos no auditório.   A capacidade era para 160 pessoas. Shakespeare não era muito cultuado na zona norte. Flamengo versus River em vez de Hamlet, o príncipe dinamarquês. “Tem cuidado em não entrar em uma briga, mas uma vez nela, faze tudo para que teu adversário sinta temor”. Naquela noite enfrentamos o futebol. Perdemos feio.  “Ser ou não ser… Eis a questão”. Logo na primeira cena, do terceiro ato, o Flamengo decidiu a partida. O dramaturgo inglês abatido por sinais eletromagnéticos decodificados pelo receptor de um quadragenário rádio capelinha.  Quando Zé Libório, vigia do estabelecimento teatral, como ele mesmo gostava de ser chamado, anunciou a gojoba, a plateia, desanimada e abatida, renasceu aos berros de é gol, é gol.   “O resto é Silêncio”. 

José Afonso de Araújo Lima e Ajosé Fontinelle, em 1995, após a estreia da peça Guerra dos Cupins, em Parnaíba-PI.

22h03

Xerostomia. Queimação na boca. Lábios rachados. Língua áspera. Náusea. Desequilíbrio. Vertigem. Atordoamento. Hipotensão ortostática. Escuridão.

Jeosá nasceu na Arlindo Nogueira. Pertinho da Miguel Rosa. Tiradentes, Clodoaldo Freitas, Campos Sales, Arêa Leão, Benjamim Constant e Anísio de Abreu foram testemunhas de inúmeras traquinagens. Pega-pega. Pau de bosta. Polícia e ladrão. Caveira. Bandeira. Queima. Esconde-esconde. 

Aos 12 anos, interessou-se pelo cinema. Os amigos reuniam-se, aos sábados, na casa de Denílson. Patinha, assim era conhecido o filho do deputado, ganhara recentemente um videocassete. Cinco meses depois, financiados pelo dinheiro público, já produziam os próprios vídeos. Os cenários eram sempre as praças da capital. João Luis Ferreira. Pedro II. Rio Branco. Saraiva. Bandeira. Landri Sales.  Da Costa e Silva. Os enredos, uma trapalhada mambembe de filmes norte-americanos e europeus. 

Dormência. Repouso. Quietação. Bradicardia. Incontinência urinária. Incontinência fecal. Esfíncteres ineficientes. Uma fetidez danada. Um constrangimento só.  Excrementos encharcando a brancura dos lençóis. 

No Teatro de Arena, Jeosá interpretou Crispim. Cabeça de Cuia. Protagonista de O pescador e o rio, de Gomes Campos. O drama do menino pobre, incapaz de pescar um peixe sequer, impressionava. O assassinato da própria mãe não justificava a maldição. Parnaíba. Sete Marias virgens. Canoas emborcadas. Poti. O homem feito monstro. Destruíra, fatalmente, a mãe-boa, inocente dos abusos da mãe-má.  

O gigante tornara à cabeceira da cama. Mãos invisíveis massageavam os ombros de Jeosá. O mau cheiro substituído pela combinação do aroma de todas as artes. Finalmente a claridade atingira o corpo do ator. Onde anteriormente cortinas, agora luz. Sentira-se renovado. Acreditara ser possível sentar-se. Até mesmo caminhar pelo quarto. Quem sabe desbravar cada aposento do maior hospital público do Piauí.

23h02

Apenas um corredor. Levaria 59 minutos para percorrê-lo. E no corredor, dispostas de forma assimétrica, sete portas. 106. 205. 304. 403. 502. 601. 700.

Ao aproximar-se do primeiro cômodo, uma quentura atingiu-lhe em cheio. Distinguia gemidos e imprecações. Naquele quarto habitavam queimados de toda espécie de danação. 

Logo adiante, no 205, o silêncio era constrangedor. Gonorreia. Cancro duro. Cancro mole. AIDS. Infecção por clamídia. Pediculose do púbis. Herpes genital. 

O quarto 304, reservado para os suicidas, estava lacrado. Impossível visitá-los. Consolá-los. O trinco fora arrancado. Os amaldiçoados agrediam, inutilmente, a madeira maciça da porta. 

Havia grades nas janelas do 403. Homens e mulheres nus, amarrados uns aos outros, debatiam-se insanos. As cabeças raspadas espelhavam o incômodo da posição. Assaltantes. Assassinos. Estupradores. Corruptos. O humor aquoso produzido pelas glândulas sudoríparas era uma expiação.

Os adúlteros aguardavam no quarto seguinte. Machos de um lado. Fêmeas do outro. Genitálias trucidadas. Bocas costuradas. Olhos esbugalhados. Encaravam, atônitos, o sofrimento alheio. Resignação.

Há alguns metros do 601, uma surpresa. Bloqueando o corredor havia um padre.  O religioso segurava com a mão direita a própria cabeça. Desligada do restante do corpo, a cabeçorra fitava o jovem artista. Aterrorizado, tamanha era a serenidade de Jeosá, o presbítero recuou, para logo em seguida desaparecer. 

Os dois últimos quartos abrigavam mentirosos e invejosos. Assim mesmo confundidos. Difícil identificar quem era quem. Esfaqueados, despejavam sangue por onde passavam. Ocupavam-se em lambuzar o rosto e o corpo dos companheiros. Sequer perceberam a presença do ator.

00h00

Jeosá não resistiu ao acidente vascular cerebral. A ruptura de um vaso sanguíneo intracraniano matou-o três horas e 55 minutos após o desmaio. Mal tivera tempo de ser examinado. Deixara no Teatro João Paulo II, uma plateia assustada. Não pagaram para assistir ao espetáculo da morte de um ator. Alguns ainda permaneceram na calçada do teatro. Aguardavam notícias. Muitos, acompanhando o elenco, lotaram o saguão do HUT. Encaminhado para o Getúlio Vargas, Jeosá vagou inconsciente pelos traumas e medos e frustrações que acompanham a humanidade. Encaminhado para o Getúlio Vargas, Jeosá conheceu um pouquinho do Céu e do Inferno. Enfrentou a Morte, enquanto a Sombra Fabulosa massageava-lhe a matéria. 

Teresina, 26 de junho de 2009

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