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Letras com login: a inovação da cultura piauiense no digital

Arquivo pessoal / Noé Filho

“No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho”. O então desconhecido poema, publicado em julho de 1928 na revista literária Antropofagia, não era obstáculo, mas espelho. Drummond, artesão do cotidiano, à época um jovem autor mineiro, esculpiu no verso repetido a essência do humano confrontado com o absurdo. O poema-minimalista que carregava a grandiosidade do desconcerto, dividiu leitores entre o espanto e o desdém, sem perceber que a genialidade morava exatamente na aparente pobreza de recursos: um verso que se batia contra si mesmo, como um homem diante do impossível.

Longe de ser monótono, “No meio do caminho” expressa um ritmo persistente que reflete os impasses da criação. Sua força reside em nomear o óbvio e transformá-lo em mistério. Neste contexto, as revistas e inquietações literárias surgem como faróis de resistência, uma vez que oferecem um espaço vital para circulação de ideias experimentais as quais muitas vezes não encontram acolhida imediata no mercado. São territórios onde o experimental não é tratado como elemento estranho, contudo como semente necessária para renovação artística. Por meio delas, debates cruciais ganham corpo, permitindo o confronto com a tradição e a iluminação de novas tendências. Atuando como indicadores da vitalidade cultural de um país, abrem caminho para vozes emergentes e propostas ousadas que, de outra forma, permaneceriam silenciosas.

No Piauí, as revistas e plataformas culturais são como rendas feitas à mão: tramas que guardam o sussurro das ruas, o cheiro do chá da tarde, o suor dos que escrevem contra o esquecimento. Em Teresina, o texto resiste ao tempo ácido do sol. As publicações pulsam nas telas lidas nas praças, nas conversas que ecoam pelas redes sociais, nos ensaios de bandas que afinam os instrumentos enquanto a cidade dormita. Elas não veiculam notícias, guardam segredos. São bordados narrativos onde cada ponto é um sotaque, cada linha um verso não escrito de um poema contínuo.

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Um ecossistema cultural saudável depende da existência de publicações e exposições periódicas diversificadas e qualificadas, as quais promovam o diálogo constante entre o estabelecido e o novo. Dessa forma, a cultura se mantém viva por meio de trocas significativas. O que dá substância a uma revista ou plataforma cultural piauiense é, principalmente, o encontro entre quem escreve e quem lê de forma reflexiva, como quem aprecia a poesia em silêncio. Nesse contexto, a publicação do poema de Drummond ilustra como tais espaços são essenciais para que obras transformadoras alcancem seu público e, posteriormente, integrem o cânone. A pedra no caminho permanece, assim, como símbolo dos desafios que a criação artística enfrenta e supera, graças a veículos que se dispõem a acolher o diferente.

Em Teresina, onde o sol determina o ritmo e o rio Parnaíba delineia histórias, a Geleia Total emergiu como uma semente de inquietação que floresceu em ponte. Mais do que um coletivo, tornou-se um verbo, uma ação contínua de transformar o invisível em palpável. Noé Filho, seu idealizador, teceu fios de inconformismo para criar uma teia que desafia o eco vazio do “Piauí não tem nada”. Desde 2014, a geleia de pixels e algoritmos não se espalha em pães, mas em mentes. O coletivo borda um novo mapa cultural, onde cada artista local é um território a ser descoberto. O digital virou praça, galeria e palco amplificando vozes que antes sussurravam para paredes.

Ao longo dos anos, o que começou como um caldeirão de ideias, anteriormente preparado apenas por Alisson Carvalho, Cândido Sales, Hermano Niño e o visionário Noé Filho, firmou-se como uma referência cultural, iluminando trajetórias e revelando as múltiplas facetas do Piauí com uma linguagem vibrante e acessível. Sua atuação alimenta o senso de pertencimento e acende o orgulho nas novas gerações, destacando o valor inestimável de nossas raízes. As páginas viram fermatas onde lendas, causos e poesias cozinham em fogo brando, criando uma geleia artística com sabor inigualável que habita o imaginário de todos que a provam. Difundir cultura assim é servir colheradas dessa iguaria literária: doce, ácida e irresistível. Quem experimenta, quer repetir. Quem lê, descobre o Piauí não como ponto geográfico, entretanto como pulsação vital nas entrelinhas de cada verso e prosa de um povo.

Arquivo pessoal / Noé Filho

De fato, a Geleia Total não é apenas uma resposta, é uma pergunta em movimento: e se o local for universal? Por certo, assim como despertado, o Piauí, longe de ser um estado inexpressivo, revela-se como um epicentro criativo, onde a cultura emerge das raízes mais genuínas e profundas da vida. Sua matéria-prima não está nos estudos acadêmicos, contudo no cotidiano que pulsa nas bancas de feira, nos rabiscos de cadernos, nas conversas à beira da calçada, na poesia das ruas e nos segredos dos bastidores. É um frenesi que surge com a mesma urgência do coração batendo: tão real quanto o solo sob os pés, tão vital quanto o ar que respiramos. É uma cultura que se corporifica, que sangra, que corre e transborda da vontade feroz de não se deixar apagar pelo esquecimento. Valorizar nossa identidade deixou de ser resistência para tornar-se celebração ativa. Uma vez que educa ao mostrar, inspira ao existir e desfaz mitos com a simples coragem de ser. Cada postagem, cada exibição online, cada entrevista é como um grão de areia no vasto deserto cultural, contribuindo para construção de um legado que transcende fronteiras e temporalidades.

Portanto, a história cultural de Teresina é um rio de múltiplos afluentes, onde cada coletivo e movimento artístico desenha seu próprio curso antes de convergir na larga bacia da Geleia Total. Durante as décadas de 1970 e 1980, a cidade pulsava com grupos de teatro experimental que transformavam praças em palcos improvisados, enquanto conjuntos musicais ecoavam nas noites quentes com melodias que misturavam tradição e ousadia. Artistas plásticos pintavam murais em paredes cegas que, em sintonia com instituições públicas, estabeleciam as bases do cenário artístico local. Com efeito, tal chama criativa permanece acesa por meio de novos protagonistas que navegam pelas águas desse rio antigo. São coletivos como a poesia slam que reinventam a palavra, Salve Rainha’s que ecoam vozes antes silenciadas. Ao mesmo tempo, as revistas e plataformas culturais constroem narrativas em outras dimensões, tal como a revista Acrobata, que iniciou sua dança em 2013 ainda em páginas físicas, reinventa-se ao migrar para o digital em 2019, tornando-se uma publicação que captura o pulso da criação contemporânea ao redor do mundo. Bem como a revista Desenredos, desde 2009, reúne textos que apreende a essência criativa da cidade, abrangendo ensaios reflexivos e poesias que traduzem em palavras a criatividade e a alma da cidade.

Em entrevista à Geleia Total, Demetrios Galvão, autor de livros, historiador e coeditor da revista Acrobata, e Adriano Lobão Aragão, também autor, professor do Instituto Federal do Piauí e editor da revista Desenredos, além das revistas eletrônicas Espia e Bangüê, personificam como cada plataforma em que atuam representa uma pequena revolução no meio intelectual e cultural. Suas trajetórias ilustram um movimento consciente de ruptura com paradigmas tradicionais, onde cada projeto editorial assume o papel de agente transformador. “Somos uma revista feita por piauienses, e nisso está inserida nossa identidade piauiense – nosso olhar, perspectiva e sensibilidade. Não temos como não ser quem somos, estando aqui, neste lugar quente, na periferia do Brasil, geograficamente distante dos principais centros, vivendo certas angústias por estar nesta localidade”, afirma Galvão. Para ele, a identidade piauiense ou piauiensidade está na subjetividade e no desejo de fazer o melhor possível, justamente por estar em um lugar por vezes esquecido, ridicularizado e menosprezado. “Realizar um trabalho bem-feito e relevante é a melhor forma de um piauiense responder a esses estereótipos”, complementa.

Neste emaranhado digital, as revistas e plataformas culturais, mais que veículos, são trincheiras onde vozes periféricas desmontam a fortaleza do cânone. As quais rompem cercas geográficas e acadêmicas, irrigando o debate público com diferentes sotaques. Em cada texto um levante, cada artigo um desvio criativo que comprova: a excelência intelectual não mora apenas em endereços consagrados. Ao sustentar práticas de curadoria e crítica ancoradas em realidades locais, tais iniciativas fomentam ecossistemas culturais autônomos, onde o mérito artístico é avaliado por parâmetros contextualizados. Segundo Adriano Lobão, uma mudança significativa nas revistas culturais editadas no Piauí é a sobreposição do meio digital às edições físicas em larga escala. “As edições impressas de revistas como Desenredos, Revestrés e Acrobata não são mais publicadas há algum tempo. No entanto, eu acredito que as linhas editoriais permaneçam ainda bem próximas dos ideais defendidos anteriormente”, observa. Embora reconhecendo a maior abrangência do digital, Lobão enfatiza que a edição impressa conserva um aspecto de identidade e historicidade particularmente valorizado. “Se tivéssemos um público leitor mais assíduo e interessado na aquisição de publicações como essas e outras revistas, creio que seria muito positivo para a cultura do estado que coexistissem as edições impressas e as publicações em meio digital”, destaca.

Arquivo pessoal / Adriano Lobão Aragão

Ao valorizar contextos específicos e particularidades regionais, estabelecem-se critérios de avaliação mais justos e representativos. O mérito artístico passa a ser analisado com base em tradições locais, questões sociais relevantes e expressões culturais genuínas. Todavia, como observa Demetrios, as revistas habitam um paradoxo fascinante: estão ancoradas em territórios físicos e geografias íntimas de seus editores, mas seus leitores dançam pelo planeta inteiro. “A Acrobata, por exemplo, tem leitores em todo o mundo. Somos acessados praticamente em todo o planeta”, afirma. Tal diáspora digital constrói um ecossistema cultural plural, onde manifestações artísticas florescem sem perder sua essência, porém ganhando ressonância global. O coeditor acrescenta um dado curioso: o Piauí não lidera o acesso ao seu site. Através de parcerias com criadores de diversos estados e países, a publicação transcende fronteiras, demonstrando que é possível estar profundamente enraizado num lugar enquanto se conversa com o mundo. “Devido a projetos da revista com pessoas de outros estados e países, não nos limitamos ao público local ou a temas regionais. Estamos no Piauí, mas conectados e dialogando com o mundo”. Deste modo, o local e o global entrelaçam-se num diálogo constante, provando que a autenticidade regional não é barreira, entretanto ponte para conexões universais onde cada voz singular encontra seu eco no coração do diverso.

Hoje, quando o corre-corre digital nos atropela, abrir uma plataforma cultural do Piauí é como se sentar na calçada ao fim da tarde, ouvir causos, rir de coisas simples, pensar sobre o que somos. É um gesto de desaceleração, de afeto, de pertencimento. “A acrobata é uma revista que trabalha com literatura e tantos outros ‘desequilíbrios’, como costumamos brincar. Memória é uma de nossas preocupações principais e desenvolvemos isso nas nossas entrevistas. Eu e Aristides Oliveira, somos historiadores de formação e aplicamos em nosso trabalho as discussões sobre história e memória que desenvolvemos na universidade, tanto como alunos quanto como professores”. Para Demetrios, é fundamental problematizar e trazer para revista temas relevantes, como as questões étnico-raciais e indígenas. “A revista é o nosso território de pensamento, nosso trabalho sem fim. O patrimônio imaterial está presente nas entrelinhas, basta olhar com atenção pra ver”. Ainda, conforme Adriano Lobão, editor da Desenredos, “é preciso progredir muito mais nesse sentido. Preconceito, machismo, racismo, dentre muitas outras coisas nocivas, precisam ser combatidos continuamente, e as publicações culturais se tornam relevantes quando se constituem como instrumentos em prol da dignidade humana”.

Arquivo público / Google

Cada projeto editorial carrega uma assinatura de território: o sertão que não dorme, o litoral que mussita histórias de pescador, as grandes cidades que colecionam sombras de bússolas. Aqui ou lá, os verbos são costurados com agilidade de quem sabe que a cada edição é preciso colocar as perguntas na mesa: quem lê, quem escreve, quem participa, quem sonha com o próximo número. E o leitor, por sua vez, transforma o papel em passagem: se a revista pergunta sobre memória, o leitor responde com uma lembrança que não cabia em outro lugar. Segundo Demetrios, somos herdeiros das revistas que nos precederam, com destaque para Pulsar, editada entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Com cinco edições, reuniu artistas preocupados com o passado, a memória e a estética local. Suas lições bebem nas fontes de Odilon Nunes e Monsenhor Chaves, demarcando um posicionamento social frente ao passado e discutindo diretamente a identidade piauiense. Para ele, esta não é uma entidade pronta, mas algo construído, vivido e redefinido. “A Pulsar buscou apresentar elementos identitários para provocar reflexões e abrir o debate sobre o ser piauiense na arte e no cotidiano”. Conforme o autor, identidade não é algo que está dado, uma entidade, uma roupa pronta que se veste. Mas, algo que se constrói, que se desenvolve, se elabora, se vive e se redefine também. “Os piauienses têm dificuldade de compreender essa identidade local e penso que a Pulsar se colocou na missão de apresentar alguns desses elementos identitários para os leitores e leitoras, que pudessem provocar reflexões e abrir um debate”.

Nas terras onde o sol projeta sombras alongadas e o vento sussurra histórias do sertão, as revistas e plataformas digitais emergem como faróis modernos, difundindo a rica cultura piauiense para além das fronteiras geográficas. Elas são pontes entre o passado e o presente, onde cordéis ganham pixels e lendas se transformam em hiperlinks. Cada edição é uma viagem sensorial na qual o cheiro de terra molhada após a chuva, o sabor do doce de buriti e o ritmo contagiante do reisado ecoam em formatos digitais, acessíveis com um clique. Ainda de acordo com Demetrios Galvão, o futuro é um campo de possibilidades abertas e as revistas são um canal eficaz para circular ideias e imagens. “As publicações periódicas, sejam impressas ou digitais, continuarão cumprindo seu papel, com editores atentos às demandas de cada época”. No entanto, Galvão também ressalta que as plataformas digitais conquistam um alcance muito maior que as impressas. “No caso da Acrobata, saímos de um corpo materialmente ‘limitado’ a quinhentas cópias e cem páginas impressas por edição para um corpo fluido e praticamente infinito de possibilidades”. Para ele, os projetos conseguiram romper certas barreiras, especialmente por meio de parcerias, como a estabelecida com o escritor, tradutor e editor Floriano Martins e suas conexões internacionais. Entre as iniciativas, destacam-se uma ligação direta com autores de Portugal e o Atlas Lírico da América Hispânica, que se dedica à tradução e divulgação de poetas, mapeando extensivamente a produção poética hispanoamericana.

Como narrar o Piauí a quem nasceu sob seu sol, mas nunca sentiu seu calor genuíno? Como traduzir o sabor artesanal da cajuína dourada a quem só conheceu a versão engarrafada pela indústria? Como descrever a textura áspera do chão rachado sob os pés descalços a quem sempre caminhou sobre asfalto e cimento? Com veemência quase poética, Noé Filho lançava exemplos como espadas contra a ignorância. Sua ânsia era um rio caudaloso tentando irrigar desertos interiores. No fundo, não era raiva que o movia, mas uma tristeza profunda por ver tantos piauienses tornando-se estrangeiros em sua própria terra. Logo, a Geleia Total tornou-se não um ponto de chegada, mas um fluxo contínuo de descobertas. Um murmúrio que nasce nas vielas de Teresina, o grito que ecoa nas praças históricas de Oeiras, a melodia que escorre dos becos e avenidas de Floriano. O Piauí não é apenas um nome no mapa nordestino, mas um organismo pulsante de vida e cultura. É o sabor acre da cajuína caseira fermentando ao sol, a doçura terrosa da rapadura ralada no café da manhã, o crocante do peixe frito nas barracas à beira do Poti. É o artesanato de palha que entrelaça gerações de histórias, a cerâmica colorida que molda tradições seculares, o couro trabalhado que veste a identidade do vaqueiro.

Arquivo pessoal / Noé Filho

Sua geografia é um canto de resistência que transcende mapas. É o mandacaru desabrochando no árido, ensinando que até na escassez há florescimento. É o rio Parnaíba, persistente, esculpindo fronteiras e unindo territórios com seu curso ininterrupto. É a grandiosidade dos cânions da Serra da Capivara, testemunhas silenciosas de eras, convidando-nos a contemplar a força do tempo. Cada gota desse caudal cultural carrega identidade: sotaques que dançam, versos que desafiam o silêncio, tambores que ecoam de feiras a terreiros, saraus a ateliês. Suas águas brotam nas ruas vibrantes de Teresina, nos quintais poeirentos de Picos e viajam corajosamente até às calçadas de São Paulo e varandas de Lisboa entre outros destinos. É a arte que sussurra ao mundo: “Estamos aqui, e daqui criamos tudo”. Cada voz que emerge dessas terras pulsa com a energia de mundos inteiros. Artistas populares, autores anônimos e consagrados entrelaçam histórias, celebrando desde a resistência silenciosa dos cajueiros até a sabedoria barrenta do rio Poti. Suas inquietações não são meros registros, porém recriações vivas da memória, pontes entre passado e futuro.

Seja coletivos como a Geleia Total ou revistas independentes, como as de Galvão e Aragão, erguem-se como faróis de uma produção editorial ousada, onde a diversidade floresce sem amarras e hierarquias se dissolvem. Cada página virada é um gesto político, uma semente de transformação. Incluir vozes marginalizadas e fortalecer diálogos plurais não é somente necessário. É revolucionário. Juntos, escrevemos um futuro onde todas as narrativas têm lugar ao sol. Nossa força coletiva brota dessa união diversa, fascinante e inquebrável. Nossa geografia é nossa voz e ecoa globalmente.

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