Prefácio da Antologia Nossas Famílias

Só queremos respeitado nosso direito à vida! Esse desejo não diz respeito somente às atividades biológicas de um corpo considerado vivo. Queremos vida plena, com todos os processos, as emoções, os direitos e relações que sejam possíveis de dar sentido às nossas vidas. E os sentidos de vida plena que não existirem, ainda, nós iremos produzir, a partir das nossas potências e experiências. Queremos dignidade humana!

 

Quando eu senti aquele abraço,
Senti ruídos e movimentos no estômago indescritíveis.
O coração acelerou.
As expectativas vieram à tona.
Eu teria um novo lar?
Teria uma família para os almoços de meio-dia?
Eu vi no filme, e pareceu ser tão gostoso.
Só pensava: “Tomara que seja dessa vez.”
Eu sorri tanto, na esperança de chamar atenção.
E por mais que no fundo tivesse um “esquece, não dará
certo”,
Eu resistia, pela minha futura família,
Pelo meu direito de ser feliz.

 

Em 2020, no Brasil, tivemos cerca de 5 mil crianças e adolescentes aptas à adoção, dentre essas 30 mil crianças e adolescentes vivendo em casas de acolhimento. Crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, maus-tratos, negligência, abandono, e tantas outras situações de violação de seus direitos.

 

Meu último ano na casa,
Vi tantos guris e gurias indo, outro retornando.
Presenciei lágrimas, senti apertos e mágoas.
Vi gente crescer,
se tornar o melhor que pudesse ser.
Vibrei com os encontros dos outros.
Senti alegria pelos que se tornaram meus.
Meu último ano na casa –
Ainda carrego a esperança.
Um dia você abrirá a porta,
em um, uma, dois, ou duas, em quantos forem,
mas que será o suficiente para eu sentir “família”.
Meu último ano na casa,
Vivo os besouros no estômago,
Esperando aquele encontro de olhares
do qual todos falam,
que todos esperam.
Meu último ano na casa,
E eu sonho, e eu espero.

 

Adoções homoparentais são o encontro de sujeitos que perpassaram violações de direito, em busca da felicidade a partir da experiência do encontro, das construções afetivas, da proteção e da construção de novos sentidos e oportunidades. Para ressignificar o tempo, os espaços, os encontros, construir outras narrativas, novos abraços e lágrimas. Narrativas estruturadas por acolhimento, sorrisos compartilhados, superações, apertos de mão e abraços, a conquista do privilégio do olho no olho que proporciona a sensação de proteção, de pertencimento.

 

Elas têm as dores delas,
as minhas crianças,
que não gostaram de violão, como eu esperava.

Que não gostaram do ballet, como eu esperava.
Que não gostaram de rúcula, como eu esperava.
E pensando na espera, que era expectativa,
Tive que aprender que tem o tempo,
Que tem as experiências,
Trajetórias de vida.
São muitas emoções envolvidas.
São as expectativas delas, e as minhas.
É preciso um pensar constante no outro.
É urgente um conhecer mútuo.
É inadiável um acolhimento
que respeite os limites da outra,
Que traz marcas, cicatrizes, limites, desejos e vontades.
É preciso ser humano.

 

Nosso direito de constituirmos família por meio da adoção ainda é tratado como um tabu e, assim como outros, será ressignificado. A imagem falsa da “família tradicional brasileira” ainda perpassa as preferências na prática adotiva no nosso país. O direito à adoção faz parte do nosso direito à existência. Adotar é resistir num país que tenta nos dizimar constantemente.

 

Quero acordar antes do sol despontar,
Abrir a porta e te desejar melhores dias.
Quero dormir na certeza de que você está protegida,
te proporcionar o sentimento de sentir-se amada.
Que tenhas novas oportunidades,
algumas que você nem imaginou que um dia teria.
Quero ver os teus olhos-surpresa,
dançando com teu sorriso sem limite,
Se encontrar com o meu olhar-encantamento,
Com meu sorriso-realização.

Que eu saiba respeitar o teu tempo.
Que possa te proporcionar novos tempos, espaços,
novos sonhos e novos ares.

 

Queremos construir novos territórios da compreensão sobre famílias, expandir as possibilidades dos sentidos sobre os afetos, desbravar possibilidades da própria forma de existir, de resistir e de mudar os rumos da história que é pessoal, que é coletiva, que é nossa.

 

A manhã de domingo chegou,
Seria a primeira vez do passeio como família,
Foi a primeira vez de tanta coisa.
O primeiro “compra um sorvete pra mim”.
A primeira queda, seguida de mãos sujas
e roupa tingida de barro.
O primeiro colocar no colo,
com a cabeça sob os ombros,
seguido de choro,
que era dor, que era manha,
que era um chamado de atenção,
de alguém carregado de dúvida,
se era verdade, se era o real.

 

É sobre dignidade humana. É política dos afetos. É sobre partilhas. É reconstruir percepções sobre o mundo, sobre pessoas. É sobre processos de vida. É ressignificar palavras. É sobre desafios. É construir alianças.

 

Te espero ansiosamente todos os dias (…)

 

Que as linhas que se seguem, que os textos que virão, que são profundos processos de produção de novos possíveis, ou o retrato de uma realidade que existe no agora, possam tornar-se encontros intersubjetivos entre quem tem o desejo de viver e quem constrói novos sentidos de família. Que não nos falte amor. Que a dança das letras que se seguem te toque e te alcance em compreensão para além da norma, para além do dizível.

 

(Weriquis Sales)

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