O Lamento dos Girassóis Noturnos, de Ayrton de Souza

Ilustração: Igor Ganga

 

 

Edição: Auryo Jotha
Revisão: Joana Tainá
Ilustração: Igor Ganga

 

o gosto da areia na boca
e das pegadas e das pisadas,
apagadas pela força do mar
no balanço do pôr do sol

I

Custei a acreditar que os olhos que eu abria eram realmente meus. O borrão que fragmentava a minha vista me fez achar que não estava em casa. E o calor de um corpo quente junto ao meu fez com que eu me sentisse amado, e depois, aterrorizado, porque aquela cama estava vazia, a não ser por mim.

Ergui meu corpo de sobressalto. As coisinhas espalhadas pelo cômodo que pulsavam um pouco de dentro de mim e que demarcavam o espaço como meu, pareciam estar cobertas de um tipo de névoa que as invisibilizava.  O quarto era um verso do meu corpo, um lugar esvaziado.

Além disso, um estranho balanço que parecia querer me ninar, tímido, lento e carinhoso, embalava não somente a mim, mas as paredes, as estantes, a cadeira e a mesa de estudo, a lamparina sobre a mesa, as cortinas, o cachorro que dormia na porta e a porta. Ao olhar pela janela, o mundo parecia estático.

Desconfiado das incongruências de um sonho, resolvi desafiar aquilo que eu achava ser construção da minha mente. Saí do quarto acompanhado pelo o cachorro, e com uma lamparina nas mãos desenhei com fogo através da neblina as imagens da casa que nasciam da escuridão. Era a minha casa, mas agora com o sugestivo balanço que me incomodava.

O que tanto balança ao meu redor? Na sala: o sofá, a mesinha de centro,  os quadros nas paredes, as pessoas dentro dos quadros nas paredes, os olhos das pessoas dentro dos quadros das paredes e por fim as portas. Mas de todas essas, apenas a que levava para o quintal era que se movimentava em um ritmo diferente, e a diferença é sempre um convite.

Até lá, a curta chama da lamparina lutava contra a espessura da névoa para delinear todo o resto da casa que era o verso dos seus habitantes, e que até agora se davam por sumidos: nenhum deles sentiu o balanço, nenhum deles sufocou a vista com a neblina, nenhum deles foi até a porta do banheiro para dar de cara com uma entrada que levava a um outro lugar. Era um daqueles dias confusos em que o divórcio de papai e mamãe colocava a cozinha dentro do banheiro.

Ao chegar perto do quintal, o fogo assumiu que sua força não conseguiria delinear o mundo e resolveu por se apagar. Cada passo dado reverberou como pedrinhas arremessadas no lago. Mas ali as pedrinhas nunca paravam. E o lago era uma casa que tomava parte do mundo para si.

O lado de fora era uma planície verde infinita. E o mundo era regulado por um assopro ansioso. Lufadas de ar balançavam meus cabelos, minha roupa de dormir e o pelo do meu cachorro, além de tudo o que me cercava.

Como pode o mundo, sem uma parede que se toque, ter essa brisa sem dono, que não chega a ser em nada comparável à tensão agonizante de uma palavra mal dita entre quatro ou cinco paredes?

Por isso, eu andei. Eu e meu cachorro andamos pra nos afastar cada vez mais da casa que balança.  Até que ouvi um barulho. E ao ouvi-lo, percebi que já o estava ouvindo há muito tempo. Há muitas noites.

Não eram os pequenos gritinhos de dentro de casa, e nem os pequenos chorinhos ou os pequenos relâmpagos que papai dizia terem caído do céu da sua mão em mamãe. Eram pequenas coisinhas que iluminavam de fora de casa. Do mundo. Era um som brilhoso. Pensar que por noites tenho ouvido esse lamento me faz achar que venho ignorando um pedido de socorro. Então acelerei os passos porque agora não havia como voltar atrás, eu já tinha escutado e entendido, e entender é ruim demais.

Após tanto caminhar, dei de cara com um montinho de areia cercado de girassóis que choravam. Cravados no chão como facas, balançavam com o sopro ansioso do vento.

— Por que choram?

E elas em uníssono responderam.

— Por você.

II

Eu nunca parti de onde nasci, apesar disso, o tempo se encarregou de deslocar a vida ao meu redor. O verde campo que foi meu berçário da vida se tornou cada dia mais precioso com o surgimento de muros cinzentos e vidas verticais, pingando como gotas de chuva congeladas e estáticas no horizonte. Um novo tipo de vida pulsou, mais rápido e urgente do que o tipo que eu conheci, em que tudo passava na velocidade de uma nuvem.

Os ponteiros do relógio picotaram minha pele o suficiente pra dizer que eu já havia olhado demais para eles, buscando alguma resposta. E enquanto ela não era dada, me encarregava de viver e seguir o plano que me era estabelecido pelos meus pais. Eu estudei o suficiente, eu trabalhei o suficiente, eu vi o suficiente e ainda sim, nada disso foi o suficiente para poder dizer que estava vivo. Eu estava sempre sobre a ameaça do lamento dos girassóis noturnos, que choravam sobre meu túmulo desde criança.

A vida seguiu seu rumo desenhado dentro da casa que agora era só minha. Sem meu pai, sem minha mãe, sem cachorro, sem irmãos, agora eu tinha todo um espaço pra preencher de mim, só para ter a infeliz surpresa que não havia nada de mim pra preencher lugar nenhum.

E então, certa noite, repeti um momento da infância. Os meus olhos cansados se abriram turvos pela catarata e pelo balanço. Aquele acalento sugestivo que sempre esteve por perto, mas que, agora, vinha com força para dizer algo. Me levantei da cama e busquei a lanterna. Sua luz branca não delineava mais o que a névoa comia da casa, pior, fortalecia. Por isso saí do quarto no escuro, guiando-me com as mãos fracas pelas paredes que por nunca mudar, eram meu caminho seguro.

Desci a escadaria que levava até a sala e uma parte de mim ficou com raiva porque os degraus realmente levavam até o lugar que deviam. A casa era tão singular e tão monótona que ela não passava mais de um monte de tijolos e telhas e madeira juntos. E eu passei a vida toda achando que isso era uma casa, quando na verdade a casa é aquele vulto na cozinha que se vê no canto do olho. É ali que se mora. E o único vulto dentro de casa agora era o de um velho.

A porta do quintal permanecia aberta e foi a luz da Lua que me guiou até ela, junto das estrelas e dos postes e das luzes dos helicópteros. E ao pôr meus pés no asfalto, olhei ao meu redor, para as casas e terrenos cercados. Crianças de bicicleta desciam a rua de braços abertos e eram a única coisa ali que se movimentavam, então as segui, quase correndo para acompanha-las.

Eu era um velho de roupão correndo junto de crianças à noite, imitando-as com o último gás da vida e as seguindo porque as suas luzes me iluminavam por dentro. Talvez eu devesse ter sido criança pra sempre. Porque não demorou muito para cansar, meus pés fraquejarem e meu coração balançar de tanto palpitar. Ah não, o balanço.

E como se elas soubessem, pararam suas bicicletas em um beco escuro, onde no fim dele os girassóis noturnos enfiados no chão como facas balançavam agora num ritmo cardíaco. Caminhei por entre latas de lixo e garrafas de refrigerante até ver que as crianças, com as mãos sem proteção, cavavam o montinho de areia em que viviam os girassóis.

Soltos do chão eles se penduraram no ar, cercando minha cabeça como uma coroa de flores e, ao olhar para baixo, para a surpresa apenas minha, porque mais ninguém estava surpreso, havia uma porta de madeira ressecada e de cheiro fúnebre, que abria passagem para um outro lado desconhecido. Ela se abriu. Eu estupidamente caí. E ao tentar abrir os olhos, não conseguia mais.

Mas sabia que, na verdade, eu nunca tinha conseguido sair de casa.

 

Ilustração: Igor Ganga
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