A MONSTRUOSIDADE DO HOMEM NEGRO

Quem tem medo do homem negro? Começo com  esse questionamento, pois um dos meus primeiros medos infantis foi de um homem negro. Seu Manel “Maôba”. Ele era um senhor negro de olhar irônico, andar torto e voz metálica. Todo domingo andava pelas ruas do bairro São João, com sua grande cesta, que ele carregava em um dos braços e onde colocava alimentos que a vizinhança lhe dava. Lembro do vovô me dar uma vasilha de manteiga cheia de arroz cru, para doar ao velho, que tinha em sua cesta latas organizadas para o feijão, o arroz e a farinha. Ele recebia o alimento e depositava na lata certa, devolvendo a vasilha. Seu Manel raramente recebia pequenos trocados, pois preferia os alimentos, que garantiam seus dias até o próximo domingo.

Um dia, eu tinha por volta dos seis anos de idade, tudo mudou para mim. Era manhã de Fórmula 1, um dia ensolarado, família reunida, quando o Manel apareceu batendo em nosso portão. Meu tio, que estava deitado no sofá, me disse para chamá-lo de “Maôba” depois de entregar o arroz. Assim o fiz ingenuamente, ele só não me avisou para correr. O velho me pegou pelo braço, apertando-o, xingando-me e dizendo-o para respeitá-lo. Meu coração saltava no peito, o choro irrompeu da garganta como um vômito e vovô chegou e me pegou pela mão, tentando me acalmar. Lá fora, na rua, alguns adolescentes da vizinhança começaram a caçoar do homem, que saiu correndo, pegando pedras no chão e arremessando, irascível, na direção dos rapazes gargalhantes. Depois disso mantive distância, daquele que me pareceu um monstro.

Posteriormente, quando minha mãe falava de Bicho Papão, do Velho do Saco ou de Lobisomem, sempre vinha a imagem de Manel “Maôba”. Ele virou uma espécie de ser mágico e maligno dos domingos naquele final de anos noventa. Sempre me escondia para algum quarto em sua hora de aparição à porta. Diante disso, pergunto: qual a estética da monstruosidade? Para refletir essa problemática, primeiro é importante perceber que no processo de desagregação da população negra e indígena, enquanto o Brasil era inventado, o homem negro foi colocado como perigoso e abominável, diabólico e violento. Isso chegou ao nosso inconsciente racista, de maneira tal que automaticamente um homem negro suscita tantos medos e escárnios em muitos lugares dessa cidade, que não se pode contar. O homem negro te faz mudar de calçada, te faz segurar a bolsa contra o peito. O homem negro te deixa desconfortável no teatro. No shopping ele é perseguido pela segurança atenta à cor da pele. Se ele estiver de moto, então.

O racismo à brasileira é tão sofisticado e amplo que está em muitas situações e até em nossa cultura, na nossa arte, e que a europeidade insiste em demonizar. As famosas esculturas de madeira do Cabeça-de-Cuia são, há muito tempo, alvo de deliberados ataques racistas. Não surpreende, pois o maior monstro da cidade é retratado em uma imagem que lembra muito as esculturas tradicionais de Exu, tão associadas ao diabo dos cristãos. Ali, pelas mãos do habilidoso Zé Luiz, está clara o fenótipo negro do monstro de Teresina habilmente talhada em madeira, em proporções desiguais à moda da arte iorubana, com grandes olhos, a cabeça muito maior que o corpo e pequenos braços segurando um osso, o que causou muito estranhamento na década de 1980.

O cabeça-de-Cuia, segundo o pesquisador Rafael Nolêto, é um encantado das águas adorado por nossos indígenas. Basta ver toda a cultura material-visual que lhe diz respeito, apesar da perpetuação de sua narrativa colonial matricida demonizadora:  nos quadrinhos que lhe retratam,nas capas de livros que lhe romanceam e até no desenho de crianças na escola, ele é negro. Trata-se de uma entidade cuja história foi apropriada e horrorificada. Que o leitor atente: por trás de toda imagem existe uma ontologia, uma visão de mundo, valores sociais. As imagens são importantes mediadoras de relações e trocas no mundo. A cultura material de Teresina é denunciativa dela mesma. Como espelho, a arte mostra-lhe as suas nuances racistas. Ela mostra nossos processos de formação, a construção social de nossas subjetividades, do nosso pensamento coletivo. A formação de uma neurose cultural que perdura até hoje: a diabolização, por meio da violenta folclorização, do negro e do indígena, bem como de suas culturas. E o reforço dos estereótipos acerca da negritude.

O Cabeça-de-cuia é negro na imagética, isso é fato. E ele é monstro. Quem aqui pensava no ser mítico-místico como um homem branco? Quem pensa no homem-do-Saco como um papai Noel malvado e maltrapilho? Por que os monstros são negros? A professora Maria Sueli certamente diria, criticando a colonialidade: porque os negros, estão fora da estética europeia e tudo o que está além desse sujeito, posto como universal divino e ascencionado, é monstruoso, animalesco e diabólico. E o que se faz com monstros, então? Talvez você me diga: aniquila. Exatamente: se persegue e se abate à forma da imagem do arcanjo São Miguel abatendo um diabo negro. Há uma imagem mais colonial do que esta? O diabo é racializado de maneira nada ingênua. Há uma ontologia de supremacia e dominação por trás disso.

Nesse quesito, o Brasil é uma cópia do ícone do arcanjo cristão, sendo uma referência mundial ao pisar nossos pescoços negros: segundo o Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ) (Unesco, 2017), o país figura em quarto lugar em abates, ficando atrás apenas da Colômbia, Ilhas Virgens, El Salvador e Venezuela. Aqui jovens entre 15 e 24 anos são os que mais são mortos. Entre jovens negros as mortes violentas são 74% maiores do que entre jovens brancos. Fora isso, a necropolítica teresinense não apenas mata, mas também é indiferente à violência para com homens negros, na política do “deixar morrer”.

Essa indiferença me impactou quando, em pesquisa de mestrado, convivi de maneira muito próxima a mulheres negras periféricas da zona sul da cidade. A morte paira muitas de suas histórias e experiências, constatei isso ao estudar processos de educação não-escolar comunitária, a partir do conceito de sofrimento social. Sempre havia um (ou mais) irmão, namorado, primo, vizinho assassinados ou que cometeram suicídio. Some-se a isso o sintomático inconsciente jurídico e policial de nosso Estado, em que muitos desses casos são tratados com desdém, violência e desinteresse em apurar os delitos e crimes: se a vítima é “monstro” (leia-se: periférica, negra, pobre), não haverá empenho por parte de operadores do direito e autoridades, a não ser que se recorra à grande mídia e ao apelo social mais amplo, o que é muito custoso para famílias alijadas, distantes dos centros de poder e em estado de luto. Tristeresina é um lamento atualíssimo de Torquato para esta cidade.

Hoje, eu, ao andar por ruas da zona leste, vendo a viatura da polícia me parar, o segurança dos grandes shoppings da cidade me perseguirem; quando sinto medo de entrar no supermercado sozinho, pois os vigilantes sempre me acompanham ou me olham de longe; quando ando nas calçadas e observo as dondocas segurando a bolsa ou voltando para o carro às pressas, me sinto um monstro, uma presa desse sistema. De certa forma, eu sou um “maôba”, um diabo. Me sinto deslocado, desagregado, ultrajado. Sou obrigado a andar com minha carta de alforria à testa de maneira humilhante (Como vovó sempre me disse a vida toda: não saia de casa sem a identidade) para que eu não seja “exorcizado”.

Agora que a sociedade vestiu branco e jogou flores para Iemanjá no réveillon. Agora que a maior festa negra da terra passou, para contentamento de toda esta sociedade, a cidade continuará sua manutenção racista e nós continuaremos lutando. E que eu sobreviva até o próximo carnaval. E que eu possa dançar sem medo. E que Exu me/nos proteja.

Saravá.

 

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