Poesia – Joe Ferry

“enquanto isso falava aos seus rebentos

de nada valeria tanto esforço e sacrifício

de nada serviria todo sangue e agonia

seria pilhéria, seria nada…

enquanto isso rebentava o pudor

de ódio e de amor seu mais novo filho

solapava seu carma intentado pelo pai

cavava fundo e se cobria de ira e rancor

enquanto isso se esgueirava entre sombras

a moral e a urgência, sangrando no escuro

sob o muro de indecências de soslaio

como esquiva-se o esguio entre as frestas…”

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celebro o pútrido em ti

o nefasto e o insano

celebro todos os teus e os meus demônios…

numa orgia encantada

as sombras noturnas e os bêbados cotidianos

celebram a morte

refestelando-se de vidas,

como uma besta medieval…

o obscuro e o celestial

de mãos dadas num regozijo

num gozo transcendental

num gole descomunal de insensatez,

da mais vulgar e divina sensação humana…

brindemos!

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Era tarde e, irônico, o dia se anunciava.

Tórrido e voraz como de costume, fritava o já pouco caráter que restava à mesa. Entre as

frestas de luz que nos ofendia havia também os infames alvitres entre copos e corpos. O caos

de uma cidade e de seus moribundos notívagos se refestelava de toda nossa amoralidade

inconsequente e vívida. Por mais que tímida ou sorrateira ou escancarada que fosse, nada

mais nem menos que iguais em desgraça ou na graça de ser. Como se a urbe nos incitasse ao

alvorecer, mesmo que tolhêsse-nos com a amplidão de sua luz, feito quem gosta da dor e sente

prazer em sofrer.

Era tarde e, irônico, o dia se anunciava.

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o que me fora tirado da algibeira

nem alcova nem alcachofras pagam…

o que me fora roubado da infância

nem Nietzsche nem Almodóvar…

nem sequer uma super transa entre

Oswald e Macalé… numa “antropomorfagia”…

apenas sigo porque não me é dado o direito de voltar,

ou parar… mas sigo também pela cuca quente e inquieta

que meu vizinho demonstra ter!

o que me apraz e me sacia

é imoral e inefável…

feito comer chocolates com Manoel de Barros!

ou trocar carícias e afagos com Charles…

sem cair Bukowski adentro!

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Sobre a mansidão

só o silêncio nos fala

quando nos cala a alma

e quedamos serenamente

um no outro como a não saber

onde começas ou onde findo

Sobre a tormenta

nosso caos particular

vívido, visceral… carne e carma…

também é parte de nossa alma

e lapida quem somos

a cada encontro!

Somos dois e um!

Mansidão e Tormenta!

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Serve mesmo aos desavisados, qualquer aviso. Que seja um sopro ou assobio de tempo.

Que seja uma estaca fincada em lugar qualquer. Serve sempre aos desnorteados, um pólo

imantado, uma migalha, uma agulha que aponte, seja pronde for. Mesmo de sobreaviso, ainda

que inflamado de norte, perde a pouca sorte que possui o poeta sem sua dor, sem sua vida,

sem seu labor… que sua dor seja fajuta, que sua vida seja suja, que a rede e o vinho seja o

único e verdadeiro labor que já tenha conhecido. Faz-se renitente ante suas glórias inventadas

e suas mazelas glorificadas, faz-se a arte daquele que apenas vive sem muita consciência ou

moderação, faz-se a vida daquele que sobre avisos e afagos, um tornado oriente, decadente se

mantém a vagar pela beleza da última fibra ou fio de sanidade.

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Sobre tudo o que me rodeia

tenho clarividência

uma esquizofrenia ególatra

sinto a fogueira ao primeiro crestar

e a findo antes que finde a derradeira centelha

fartos ou parcos ou podres

sinto a catinga e o perfume

corroer meu peito incrédulo

de sua própria sagacidade

e vorazes a descrença e a fé

solapam suas últimas ruínas

e o deserto que me resta,

a antítese de minhas certezas,

me arrasta ao meu limbo

Já não tenho evidências

de qualquer coisa claramente

Já não me tenho, nem a mim nem ao razoável,

Na Casa Verde de Simão apenas escrevo.

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Mostra-se manso, etéreo, obtuso

astuto manco tal qual ebriedade

servida ao varal de panos desnudos

insanos galopantes goles mortais

veredas de impraticável retorno

feito a morte possessa de vidas

fatal e indecorosa aos olhos alheios

devaneio renitente, inapto aos dias –

escória clariscente da madrugada,

punhal jorrante, sangria social –

vadia, pretensa e infame poesia…

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certo de não haver respostas,

ao menos não as plausíveis –

encerrei há muito as buscas.

deixei a bagagem ao relento,

não me valia de nada –

a não ser o peso incômodo e,

no meio de lembranças,

algumas angústias…

não me incomoda minha nudez,

ou mesmo minha infâmia,

não a mim!

preocupa-me mais as vísceras frescas

da vida que levo e a concorrência com os urubus.

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poesia burocrática

de poetas por ofício

prefiro a morte lenta dos cigarros…

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