Até que ponto queremos mesmo que a arte se democratize?, por Noé Filho

Peça O que te escrevo é puro corpo inteiro – Foto Noé Filho

Existe um desejo enorme de todos nós, que trabalhamos diretamente com cultura ou que estamos engajados por essa causa, de que nossas produções culturais tenham um grande público. Que este público seja diversificado, alcance todos os públicos ou tenha a possibilidade de ser acessível para a maioria deles.

Quando algum evento que sabemos que tem alta qualidade artística não tem um público tão grande, começa a caça às bruxas. De quem é a culpa? Do público que não sabe valorizar arte? Do governo que não oferece condições necessárias para a população usufruir da programação cultural da cidade? Da imprensa que não divulga com tanto afinco determinados segmentos culturais?

Essas perguntas sempre rondam minha cabeça, pelo menos. Só que também fico pensando: os artistas e o público mais engajado nessas produções querem mesmo que todo mundo apareça e compareça?

Infelizmente, fico na dúvida. Sinto que parte desse público gosta da sensação de estar em um evento exclusivo e se sentir até superior por isso. Enquanto está ali apreciando aquela obra de arte de alto nível, grande parte da população inculta não está presente, não sabe reconhecer o valor.

E o que é pior: quando alguns eventos conseguem de fato serem populares, esgotar bilheteria, alcançar pessoas que não necessariamente frequentam sempre esses eventos, fica evidente como esses mesmos eventos não estão preparados para lidar com elas.

Eu, que já expus tantas pessoas citando como exemplos nos meus textos, neste vou me pegar como exemplo. Quando vou a uma peça de teatro, por exemplo, que teve o êxito de atrair um público que não tem o hábito de ir ao teatro e do nada várias pessoas sacam o celular, ligando o flash com gosto e começam a tirar foto e filmar a peça toda, bate um ódio enorme, fico na dúvida se grito ou corro. Para mim, esse tipo de intervenção é uma agressão, atrapalha a experiência que quero usufruir.

Também é comum muitas pessoas quererem conversar durante a apresentação, comentar com a amiguinha do lado, essas coisas… Só que é mais do que esperado que pessoas que não estão habituadas a estarem naquele ambiente e não sabem perfeitamente quais as regras daquele espaço ajam como têm costume de agir nos ambientes que frequentam.

Inclusive, querer filmar tudo, tirar mil fotos e comentar durante a apresentação são ótimos sinais de que essas pessoas estão gostando, se sentindo impactadas, querem estar ali. Só que essas pessoas que podem estar ali pela primeira vez, muitas vezes, são tratadas mal por nós, que estamos habituados e queremos ter ali nossa experiência linda e maravilhosa.

E é aí que entra a contradição. Como queremos que produções culturais sejam populares se não estamos preparados para receber essas pessoas com o acolhimento que deveríamos? Se não existe um processo de educação para ensinar quais os comportamentos adequados para aquele espaço?

Exemplo disso são os cinemas. Toda sessão começa ensinando o que é ou não é permitido e dando as normas de segurança. Outro exemplo disso são os voos comerciais. Antes de cada decolagem são ensinadas as normas básicas de segurança e de comportamento naquele espaço. Porque sempre existe a possibilidade de alguém ali estar voando pela primeira vez.

Por isso que alguns eventos e espaços, mesmos sendo acessíveis do ponto de vista financeiro e de transporte, ainda não conseguem atingir um grande público. Muitos espaços são construídos e cultivados para serem espaços de privilégios. Quem é da periferia, quem não tem o hábito de estar nesses eventos culturais, quem é negro, indígena, LGBTQIA+, idoso ou pessoa com deficiência, sente até aversão a estar presente nestes espaços.

O quanto nós, produtores culturais, estamos preparados para acolher o público em toda a sua diversidade? O quanto nós, pessoas já habituadas a frequentar esses espaços de cultura, temos paciência e acolhemos quem está presente ali pela primeira vez? O quanto os espaços de cultura se preocupam em receber bem, tirar dúvidas, tornar de fato acessível toda a experiência das produções artísticas que promovem?

 

Escrito por Noé Filho.
Revisado por Paulo Narley.

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1 comentário
  1. Muito interessante sua colocação.
    Gostaria de comentar com as casas de espetáculos que não cria e cativa seu público, deixando para a classe artística a responsabilidade de divulgar suas produções e consequentemente a sala de espetáculos. Sai muito caro.
    Há também preferência da gestão das casas de divulgar uns e outros não.
    Não existe uma programação das casas que contrate de espetáculos(Teatro) que possa oferecer ao público
    principalmente esse mais distante.
    Quanto a classe artística é muito seletiva, e nem sempre apoia os colegas de produção. Desejam sucesso nas redes sociais e não prestigiam os espetáculos. As cadeiras têm braços mas faltam as mãos para aplaudir.

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