Avaliação Mensal 5, de Ayrton de Souza

Ilustração: Igor Ganga

Edição: Auryo Jotha
Revisão: Joana Tainá
Ilustração: Igor Ganga

 

A cada dia mais, o silêncio pressionava. A cada dia mais, menos se via dos outros. A cada dia mais, as fileiras pareciam infinitas porque estavam vazias. Preenchidas pelo nada, seus vultos eram um entulho de memórias. Acho que tudo isso começou depois da Avaliação Mensal 5. “Aquela” prova que todos da escola deviam fazer.

Em um dia letivo qualquer, brincávamos na turma de “Lixo no lixo”, um jogo autodepreciativo que consistia em um de nós entrarmos dentro da lata de lixo que ficava no canto da sala para balançar nosso corpo de maneira que a lata se movimentasse e que nós, dentro dela, não caíssemos. Mas isso nunca dava certo. E essa era a graça.

Como um aluno de ensino médio nunca sabe o que esperar do seu dia escolar, certa manhã fomos pegos de surpresa pelo diretor, enquanto zoávamos com a lata de lixo da sala. Ele estar ali significava também que um problema vinha junto. Entretanto, dessa vez ele apenas ignorou o furdunço e todos os alunos e alunas ao redor da brincadeira caminharam sem graça até suas carteiras. Buchicho. Buchicho. O diretor não estava só sério, estava preocupado.

“Estamos chegando ao fim do semestre e, como bem sabem, também se aproxima o período de férias.”

Gritos animados no fim da sala floreiam o momento.

“Porém, chegou até nós, como chegou até toda escola na cidade, uma mudança na diretriz das férias de meio de ano. Não é obrigatório que todas as escolas sigam, mas, prezando pela qualidade do nosso ensino, nós seguiremos.”

A sala neblinou. Os olhos acinzentaram por dentro das bolotas brancas. O sol de junho e o bolo de milho das festas juninas caíram no chão deslizando por uma longa escadaria fatal. Buchichos. Buchichos. Mas uma menina não buchichou, e ela era a líder de turma.

“Mas Diretor, o que iremos fazer aqui durante as férias?”

Antes de ele responder, cruzou os braços prendendo a verdade no peito.

“Vocês farão a Avaliação Mensal 5, uma como todas as outras, só que agora, nas férias. Nada de especial. Vocês não precisam se preocupar.”

O Diretor saiu da sala com a postura ereta, sustentando algo muito além que ele próprio e invisível para todos. Em seguida o professor chegou, mas não conseguíamos pensar em nada além de nossas férias perdidas.

***

No começo foi sutil, como o barulhinho da corda da dinamite antes de chegar ao estrondo. O semestre encerrou no último dia do mês de junho, tivemos um fim de semana de folga, e então na primeira semana útil do mês de julho, sabíamos que deveríamos estar em sala de aula. Para que matéria? Isso não sabíamos.

Perguntaríamos ao professor que aparecesse na sala sobre o que, de fato, seria a sua aula. Mas o deslocar dos ponteiros do relógio acima de uma porta estática na sala cheia de alunos, confirmou aos poucos que nenhum professor viria, tanto naquela sala quanto em qualquer outra. Não havia professor algum, não apenas nas salas, como na escola. Nenhum professor em lugar algum.

Na falta deles, nos encaminhamos até a direção. Fui com um seleto grupo, aqueles que passavam as informações de maneira mais organizada para o resto da turma. Mas, no vidro retangular que mostrava o interior da sala trancada, a imagem de um homem de costas, olhando fixamente para uma janela, nos pegou desprevenido. Batemos na porta uma vez, duas vezes e uma terceira no vidrinho. Nenhuma resposta, ele não se mexia. A porta estava trancada.

“É impressão minha ou ele não está respirando?” perguntou a líder da turma.

“Talvez ele esteja dormindo, não nos escuta.”, disse um dos meninos que nos acompanhava.

“Veja só, parado e sem respirar ele nem parece uma pessoa.”, concluiu a líder.

E depois de um tempo, já sabíamos o que as costas de alguém significavam para olhos esperançosos. Demos a volta e planejamos um futuro retorno, em um momento mais oportuno, quando a porta estivesse aberta.

Ao voltar, notamos que as salas estavam preenchidas apenas por adolescentes suados e exaltados, com celulares na mão e ideias de vídeos. De repente, alguém em algum lugar desligou os disjuntores de energia e todas as luzes se apagaram. A escola virou uma bagunça. Cadeiras de rodinhas eram usadas em corridas pelos corredores repletos de espectadores que berravam como animais, todos puro hormônio.

Em certo momento entrei sem querer por uma porta que levava ao pátio dos fundos da escola e esbarrei com jovens que namoravam como se o mundo fosse acabar – e, pelo menos nos corredores parecia que ia – e já que eu estava ali sem fazer nada, tentei alguma coisa. Consegui. E consegui com outra pessoa no outro dia, e com mais outra no outro, porque durante muito tempo nunca tinha ninguém para nos impedir.

De repente a escola havia se tornado um ambiente de dupla personalidade: a bagunça nos escuros corredores onde o berro tremia o chão e a liberdade da área aberta onde a privacidade existia graças um muro chapiscado. Eu transitava entre os dois espaços e era nítido como a minha personalidade mudava, foram os momentos onde a liberdade era desenhada na forma de uma porta. Até que certo dia, alguém vomitou, e aquele cheiro não fez sentido pra nenhum dos dois lugares.

Uma menina tinha vomitado na sala pois se sentia enjoada. Éramos próximos, alguém que eu vi crescer junto a mim, mas que ali, naquele instante, parecia ter crescido um pouco mais rápido que a gente. Dia após dia as diferenças entre nós e ela cresceram e, por mais que eu quisesse ajudar, não havia uma mão superior que guiaria a situação muito melhor do que um adolescente. Ninguém para nos apontar uma maneira de fazê-la se integrar naquele caos que construímos com orgulho. Certa manhã sua cadeira ficou vazia, e a outra manhã, e a outra, e a outra… Um professor saberia o que fazer, nós não.

Era meio de julho. Seria apenas mais uma manhã saindo de casa, indo até a praça, entrando no ônibus lotado, indo para a escola, fazendo tudo aquilo que não deveríamos fazer. Voltaríamos pra casa, cansados, mas prontos para o próximo dia. Porém, fui pego de surpresa. Logo que acordei, vi com susto: uma multidão de mulheres, homens, crianças, idosos, cachorros, gatos e lixo, todos misturados, preenchiam as ruas de maneira asfixiante, alagando e afogando os mais fracos. Era muita gente pra pouco mundo e na televisão não se falava de outra coisa: as empresas de ônibus também entraram no período de Avaliação Mensal 5.

***

Tive que me acostumar com um mundo inteiro sobre processo avaliativo. Viver em Teresina havia se tornado uma provação. Chegar na sala de aula tinha se tornado algo para poucos. O espaço que era contemplado pelo caos hormonal agora estava sendo preenchido pela apreensão daqueles que não reconheciam no vazio das carteiras os rostos de seus amigos e colegas. “Onde está fulano?”, “Cicrano não veio hoje?” Não. E não voltariam nunca mais a aparecer, nem na escola, nem em casa, nem na rua. Teresina havia, naquele momento, entrado em estado total de Avaliação Mensal 5.

Certo dia, ao chegar com muita sorte na sala, vi que finalmente alguém novo surgira.

 O que esperávamos? Alguém que não fosse como nós, alguém que sentasse na mesa da frente, escrevesse algo no quadro e nos guiasse ou pro tédio ou pro entusiasmo. Mas todos ali ficaram embasbacados quando, ao entrar dentro da sala, a tal pessoa, trajada em roupas sociais e recém engomadas, disse o seguinte:

“Espero que não se incomodem, vim aqui somente a pedido do diretor.”

Existia algo de desconcertante naquela pessoa, cujos passos não pareciam ser guiados pela sua própria vontade e a sua imobilidade o tornava parecido com qualquer outra parede da escola. Víamos que ele estava ali a força e um aluno sabe reconhecer esse desconforto. Tanto ele quanto nós, estávamos muito desconfortáveis ocupando o mesmo espaço.

Eventualmente, comentei sobre essa sensação de erro para um colega ao meu lado, e no outro dia, ele sumiu. Passei então a falar disso com uma amiga, tanto pra puxar assunto como pra desabafar, e ela também sumiu no outro dia. E como gotas que caem pra cima, rebobinando a imagem da chuva, as pessoas da sala foram desaparecendo. Com o passar dos dias, ao caminhar pelos corredores, seja pra ir no banheiro ou ir embora, via que as pessoas nas outras salas também desapareciam e em todas elas existia uma daquelas criaturas estranhas de roupa social que não tinham a menor vontade de nos olhar no fundo dos olhos.

Ventos fortes que vinham de Deus lá sabe onde ultrapassavam as frestas das janelas, as portas abertas, as entradas pelos corredores, e preenchiam o vazio como pessoas que nunca paravam de correr. Foi quando a sujeira tomou de conta do lugar e tornou a existência ali cada vez mais insalubre, com folhas secas, papeis amassados, e ventos tão fortes que arrastavam pra dentro da escola até animais mortos. Nunca havia existido tantos animais mortos assim em Teresina.

A insalubridade das ruas adentrou as salas de aulas, mas o que não adentrou junto foram as pessoas. Sem os ônibus, todos transitavam pela cidade a pé, e sem os hospitais e delegacias funcionando, devido à Avaliação Mensal 5, a rua era uma folha de papel onde formigas iam e vinham, esmagadas ou não, vivas ou não, de um lado pro outro apenas pra sobreviver. Enxerguei isso tudo da janela da sala, mas ninguém me enxergava de volta.

***

Era final de Julho. Só sobrou eu dentro da sala, além da criatura de roupa formal. E nas outras salas, corredores, escadas, pátios: vento e mais vento. Vento correndo como gente e transparente como memória.

“Posso me levantar?”, perguntei.

Ele acenou com a cabeça, indiferente.

“É que não estou me sentindo bem, preciso ir pra casa.”, menti.

Repetiu o aceno, enquanto folheava uma revista.

“Tem algum problema?”

Eu queria muito que ele dissesse alguma coisa. Todos queríamos que alguém dissesse alguma coisa. Existir ali havia se tornado uma morte lenta e eu não aguentava mais saber que, se alguém desaparecesse, por apenas um instante, seria pra sempre. Eu queria gritar e fazer com que a desgraça no meu berro colorisse o vento de alguma coisa que materializasse essa memória flutuante ao meu redor. Eu só queria muito, muito, muito que ele dissesse alguma coisa. Qualquer coisa.

Foi quando ele virou o rosto pra mim e disse.

“Também não tô bem, preciso ir. Avise aos outros que amanhã continuamos a atividade na página que lemos hoje.”

Nunca lemos nada.

A coisa foi embora. E eu fiquei só na sala de aula. Foi quando eu tentei olhar pra alguém que eu percebi que não tinha mais ninguém.

Quando não se tem ninguém pra olhar para você, é assim que se some.

Ilustração: Igor Ganga

 

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