Sarau Piranhão: iluminado em carne viva!

Foto do Sarau Piranhão. O lugar é coberto por um teto feito de palha. Há várias pessoas sentadas em cadeiras de plástico sobre uma areia branca, mesas cheias de itens pessoais e garrafas de bebidas, o rio Parnaíba ao fundo.

 

A poesia não está só nos livros. Há deles que não tem um grama de poesia. Há outros em que a poesia é esmagada pelas palavras. Há os que tem vestígios de poesia. E há os que tem poesia. Há poesia que, indo ou não para os livros, vai para muros, camisetas, cartões postais, cartazes, agendas, recitais…

Foi o que aconteceu neste domingo, no Bar Jericoroa, na coroa do Rio Parnaíba. Poetas e um público vibrante fizeram o Piranhão, nome que não é novo, mas provocativo para um sarau poético. Feliz de quem teve a ideia e quem se incorporou a ela, tornando-a fato, ato poético.

Antes de ser escrita, a poesia – mãe das artes – deve ter nascido falada, cantada, dançada… A poesia escrita não deixa de ser poesia. O livro ainda não perdeu a hegemonia. Mas a poesia falada tem sabor especial, por causa da voz viva, do corpo, da emoção transmitida de forma direta. E se a poesia é falada por um time de poetas, ao ar livre, fora das convenções e artificialismos das salas, amplificada é a potência das vozes poéticas, para quem as emite e para quem as recebe. E se, mais ainda, as vozes poéticas ressoam de e para pessoas que tem os pés descalços sobre a areia do rio e o peito aberto para o vento e tudo o mais, o que acontece é a comunicação vivificante entre seres humanos, que se transformam em seres poéticos.

Estávamos lá, no Rio Grande das Tapuias e dos Tapuios: as águas, o vento, as conversas, os flertes, as danças, a música e uma porção de coisas indizíveis. O cenário era perfeito para a Declaração do território Mátria, por Laís Romero, dentro da qual Inimigo venal é um poema-manifesto de uma quadra obscura, mais do que escrito, falado, vivido com indignada pulsação:

Enevoado em
doença o meu país
morre
de bala
morre queimado, soterrado
de fome
das formas mais absurdas
d i s t a n t e
da civilização
d  i  s  t  a  n  t  e
da humanidade

O país morre
na lama da demência na
maldade do cristão
arrebatado cristão branco
macho
O meu país
(…)

As poetas e os poetas só podiam estar em estado de exercer suas potências. O palco era apenas um lençol estendido sobre a areia, que poetas ampliaram, sem limites, isto é, o limite era a própria areia e a vontade de abrir o coração e a boca e soltar a voz tão necessária como a água que bebemos, ou bebíamos, desse rio.

Poetas tem nomes civis para efeitos administrativos porque seu verdadeiro e único nome chama-se poesia. Foram se sucedendo no super palco coberto de palha do Jericoroa, anunciados pelo mestre de cerimônias não-cerimonioso João Henrique Vieira, que começou atiçando com a memória de uma pichação que ele tinha visto na rede de tantos peixes: “Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?”. Os neurônios dispararam. João sabe que

o tempo traz num sopro imortalidade
quando o bicho afaga a linguagem.

Marco Aurélio Siqueira teve a primazia de abrir o (re)encontro. Ele, que já havia publicado Poemas da Quarentena e Urano, anunciou seu novo livro, Cores de Todos os Cantos, de onde salta Buraco negro:

Aquele poema era uma página em branco
Não tinha uma palavra
Não dizia nada
Papel à espera de alguma cor
Faltava-lhe qualquer vestígio
Sob o toldo dos seus escritos
Esquecido de nenhum amor
(…)

Em 2017, ao me autografar o avesso da lâmpada, Demetrios Galvão escreveu: “a poesia é um avesso bonito que nos acende por dentro”. Essa a melhor síntese para aquele sarau incrível: poetas e público proporcionaram um “avesso bonito” sobre a areia, enquanto o sol despencava para o abismo de todas as tardes. Ele recitou rinocerontes da ternura, que começa assim:

nós, rinocerontes da ternura
nós, rinocerontes prometidos para a extinção
conhecemos bem os dragões da cidade,
os seus disfarces alcalinos, suas gírias oblíquas…
no nosso hemisfério de dentro navega uma jubarte
que nos salva dos naufrágios e do ataque do serrote.

nós, rinocerontes da última hora,
sabemos que todo pecado será abençoado quando feito com amor
(…)

Não existe pecado a cinco graus debaixo do Equador, a não ser ódio, ganância e muitos outros impublicáveis, que teimam em querer esmagar a poesia. De repente, poetas podem até sonhar, e certamente o fazem, mas não indiferentes ao sangue que escorre, muitas vezes invisível. Assim cantou Fernanda Paz, outra presença forte no Piranhão:

A carne que me veste –
fria roupa-
Soluça o sangue
Que
Escorre
Para o lado de fora
Enquanto sonho.

O poeta Paulo Machado estava aniversariando naquele domingo. Eu sabia que ele não estaria presente, por isso saí de casa com a coletânea O Rio dentro da sacola. A oportunidade de falar o poema dele sobre o Parnaíba surgiu após a linha de poetas convidados dizer a que veio. Na apresentação da segunda edição de Tá pronto, seu lobo, Aírton Sampaio o chamou “O Poeta, Visceral, de Teresina”.

preciso urgentemente escrever um poema!
que os versos sejam vorazes,
lembrando o rio de minha cidade,
comendo as pedras do cais.

mas como escrevê-lo?

como domar o rio de minha cidade
à condição de poema?

Como domar rios de poetas? Impossível. O palco recebia poetas que respiravam os ventos do Rio Punaré, outro nome do Parnaíba. Por lá passaram, além dos já citados, Ithalo Furtado, Assis Galvão, Samdra Dee, uns, umas e outras e essa moça incrível, Pohema Lima:

Porque me amando eu
não me deitaria com
quem não me amasse
igual, me amando eu
não me mataria pra
salvar a mente afogada
de amor nenhum,
não lutaria batalhas
perdidas e jamais faria
apostas falidas num
futuro tão alienado
Não chamaria de
amigos quem trai,
quem ofende, quem
mente.
Eu não me entregaria
a qualquer amor
marginal.
Eu seria eu inteira
Sem sonhar ser de
outro serviçal.

De repente, apareceu um rapaz magrinho, de fala mansa e poesia feroz, com o impresso POESIA IN.COM.PLE.TA, costurado com agulha afiada e linha vermelha: Christian de Jesus. Parecia um poeta redivivo da década de 70, de leminskiana irreverência:

Cheiro de cigarro
E de amor antigo
Tudo tão impregnado
E quando fora acesa
Essa brasa?

Quando a primeira pessoa
Desistiu de viver
E foi amar
O mundo foi tomado
Pela fumaça

Muitos que estavam no Piranhão pegaram o barco de volta quando o sol se punha. Dava, mas quase ninguém se atrevia a fazer a travessia com água imunda pela canela, os esgotos bem ali, pois é isso o que a pátria faz com os rios. No cais, párias fingiam vigiar os carros ou ficavam ali mesmo por ficar. O Troca-Troca estava imóvel com suas geladeiras enferrujadas.

Voltemos aos rinocerontes da ternura, onde Demetrios Galvão indaga:

quem dos muitos com quem bebemos
serão solidários na derradeira hora?

Digo, sem responder: quem os impregnados dessa brasa para nos iluminar em carne viva?

 

Gostou da coluna? Quer saber o que mais o autor tem a dizer? Leia os demais textos de Rogério Newton que temos aqui na Geleia. Quer Sugerir pautas? Manda a sua sugestão para: redacao.geleiatotal@gmail.com

 

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