Teresina, 7 de setembro de 2023, por Noé Filho

Jean Wyllys – Foto Caio Negreiros

Querido Jean,

Conclui hoje a leitura do seu livro “O que não se pode dizer” em parceria com a Marcia Tiburi e não podia deixar de escrever para você o que este livro me causou. Ao começar a escrever esta carta e indicar o local e a data, me caiu a ficha de que hoje é um Sete de Setembro, o primeiro após quatro anos em que essa data foi sequestrada pelos bolsonaristas e fascistas de toda ordem, se tornando um símbolo nefasto de uma necropolítica que obrigou você e a Marcia a se exilarem e fazerem nascer.

Confesso, Jean, que foi um livro muito difícil de ser lido. Para ser mais preciso, li a última página no final da tarde e logo fui me arrumar para ir à gira no Terreiro da Mãe Gardene de Oxósse. A gira de hoje foi conduzida pela Vovó Maria Conga, entidade guia da casa, e enquanto ela conversava conosco não conseguia parar de pensar em todas as reflexões propostas e vividas por vocês.

Em certo momento, Vó Maria falou que a força dos médiuns está também em seus penachos. Lembrei imediatamente que a primeira coisa que pensei quando vi você na coletiva de imprensa na Feira do Livro da Diversidade, a FLID, na qual tive a oportunidade de lhe conhecer pessoalmente, foi: como ele está potente com esse corte de cabelo, com seu cabelo grande e ondulado. O que contrastava com o Jean que vi na entrevista no “Conversa com Bial” ainda no início do exílio, com seus penachos parcos, frágeis, incertos.

De repente, boa parte daquela angústia que se intensificou pela leitura do livro nestes últimos dias deu lugar a uma sensação que é até difícil de colocar em palavras. Talvez, uma sensação de… entendimento. Eu entendi. Me entendi. Entendi você. Entendi a Marcia. Entendi algo sobre a vida.

Como lhe falei, você teve um importante papel na minha formação política, no meu entendimento político como cidadão. Olha aqui o “entendimento” de novo. Querendo ou não, você se tornou um símbolo para muitos de nós, se tornou uma voz potente, quando tínhamos poucas vozes com o espaço necessário para ter o alcance que você gozava.

Entendi que foi lindo ver você na FLID, compartilhando o seu axé conosco, tendo o carinho de conversar e conhecer as pessoas que puderam estar ali. Entendi que é uma felicidade ter você vivo, ter você no Brasil, ver você com seus penachos lindos. Entendi que o exílio, de certa maneira, o trouxe aqui em Teresina.

Terra de Torquato Neto. Torquato, que, assim como você, se autoexilou, que também divergia da heteronormatividade, que também era conhecido por ser destemido, corajoso, provocador e (pelo menos eu interpreto dessa forma) também muito debochado.

A CAJUÍNA CRISTALINA EM TERESINA
Carvão sobre papel
Jean Wyllys (2023)

Pelo que você me falou na coletiva, por ter citado ele no livro (com um trecho de uma poesia que inclusive já amei muito, odiei muito e fui muito indiferente ao longo da vida; talvez em outra oportunidade possamos conversar melhor sobre) e por o ter desenhado em sua passagem por Teresina, foi inevitável não pensar sobre vocês dois, esses homens de tempos tão diferentes, e ao mesmo tempo tão conectados.

Só quero saber do que pode dar certo, não tenho tempo a perder. (Torquato Neto)

Desafinar o coro dos contentes tem um custo alto, você sabe bem disso. Você, Jean, encontrou seu caminho para o heroísmo, para viver. Torquato, infelizmente, nos deixou muito cedo, virou mártir do seu tempo. Às vezes, me pego pensando no privilégio que seria ter ele aqui conosco nos provocando, tocando o terror nas Vermelhas, nas Teresinas, assim como temos Caeteano, Gil, Jards Macalé e tantos outros ainda vivos, produzindo, nos encantando.

Só sei, Jean, que quero ver você como a Kátia. Quero que você, no seu avançar dos tempos, possa abraçar muitos jovens artistas, políticos, militantes, escritores tão decisivos para as histórias desses Brasis, dessas Pindoramas, quanto você. Falo aqui de um modo até egoísta. Falo pensando em mim. Quero presenciar esses abraços, quero me emocionar da mesma maneira que me estremeci vendo a história acontecer diante de meus olhos.

Sim, eu vi a história. Quando pensamos em momentos históricos, pensamos geralmente em momentos dramáticos, ou momentos políticos de grande porte. Mas gosto de pensar que existem outros momentos históricos tão potentes, marcantes, decisivos quanto. O seu abraço com a Kátia Tapety na FLID foi, pra mim, um momento histórico, registrado, imortalizado, com alta resolução e sensibilidade pelo querido Caio Negreiros. Eu falei pro Caio, Jean, que essas fotos que ele bateu são históricas, vão estar em algum momento em um Museu, vão ser vistas e celebradas por corações que sabem da potência dos encontros, dos abraços, dos enlaces.

Jean Wyllys e Kátia Tapety – Foto Caio Negreiros

Não sei se divaguei demais, apenas escrevi o que estou sentindo agora, neste momento. Vou finalizando por aqui, antes que essa carta fique mais longa e reduza mais ainda a probabilidade de que você tenha a possibilidade e tempo de ler. Mas não poderia finalizar sem antes agradecer por conhecer melhor você por meio deste livro, e agradecer também à Marcia que, com esse diálogo com você, nos trouxe tantas perguntas. Me senti, sem querer ser invasivo, um pouco amigo de vocês, tendo a oportunidade de também entrar nessa conversa, por compartilhar (de outras formas, intensidades e matizes) muitos dos sentimentos e inquietações vividos por vocês. Fala para a Marcia que ela também precisa vir a Teresina, também queremos abraçá-la.

Obrigado por tanto, Jean.

Com carinho,
Noé Filho.

 

Escrito por Noé Filho.
Revisado por Paulo Narley.

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