Como você se define?

Dia desses eu precisei preencher um formulário e me deparei com uma questão que me abraçou o resto do dia: como você se define?

Eu não sei. Sou uma doida de pedra assumida. Faço terapia há mais de 20 anos e até hoje não encontrei a resposta. A questão era relacionada à raça. Eu precisava dizer a que raça pertenço. Parei aí e olhei para a minha colega de sala.

— O que eu sou?

— Como assim o que você é?

— Eu sou branca, sou negra, sou parda? O que eu sou?

Numa resposta que me soou como um córrego, me atravessou suave e porosa, como uma confluência polêmica e maliciosa, ela soltou esta flecha:

— Como você se define?

Peguei um espelho e me analisei. Todos os dias eu me olho no espelho por pelo menos vinte minutos, é quando realizo o ritual da maquiagem. Para mim me maquiar é mais do que buscar realçar as qualidades do meu rosto e esconder os defeitos, é um exercício de me enxergar, de sentir como o tempo tem agido em meus poros, na elasticidade da minha pele, nos arredores dos meus olhos. É trocar olhares carinhosos com a imagem do outro lado e dizer o quanto está orgulhosa da jornada que essa pessoa tem trilhado. É um exercício de autoempatia, cuidado e amor.

Dessa vez foi diferente. Olhei os detalhes, me analisei friamente e perguntei para a moça do outro lado: o que é você? Será branca? Tem a pele clara, os olhos verdes e um cabelo cujo tom aquece. Porém o seu nariz é largo, seus lábios são carnudos e a sua pele tem uma textura que não é bem a de uma pessoa branca. Serei negra de pele clara? Isso existe?

O diálogo foi duro. Quase entreguei os pontos decidida a, das duas uma: fazer uma plástica afinando o nariz, diminuindo os lábios e me mantendo em sessões de clareamento de pele, ou cacheando os cabelos, usando lentes de contato e me mantendo eternamente bronzeada. Concluí que isso seria ridículo.

Lembrei do meu pai: pele marrom escura, cabelos crespos, lábios e nariz fino. Ele é negro? Lembrei da minha mãe: pele clara, cabelos loiros, olhos azuis e nariz largo – igualzinho ao meu – Ela é branca?

— Acho que sou parda.

— Li em algum lugar que essa classificação não existe mais. Você é branco, negro ou indígena. Me parece que amarelo também é uma raça.

— Está no censo do IBGE?

— Li em uma dessas postagens das redes sociais.

— Não é fake news?

— Não sei.

Liguei para o meu amigo que cuja pesquisa de doutorado foi em torno de questões raciais. Até aquele momento o meu formulário continuava aguardando que eu me definisse.

— A discussão em torno da colorimetria é ultrapassada, Denise. Em vários países, cuja pauta tem mais substancialidade, esse assunto já não é discutido. A pele é clara ou escura, não há que se dar nome a todos os tipos de tons de pele e caracteres fenotípicos, até porque vivemos em um país cuja miscigenação é um fato. Já não existem raças puras e não se pode definir se alguém é A ou B por conta do que é observado a olho nu.

— Mas eu preciso saber.

— Então assuma você o que você é. Como você se identifica?

Aquela pergunta de novo. O pisca na caixeta do formulário aguardava a minha resposta. Eu não sei quem sou, não consigo me compactar em um espaço tão pequeno quanto o que me ofereciam ali. Olhei-me no espelho novamente. Tornei a lembrar dos meus pais, dos meus avós, dos meus bisavós.

Eu sou múltipla, sou muita gente, várias cores, inúmeras raças. Não caibo aqui. Fechei o formulário e fui me maquiar.

Tem alguma história para partilhar comigo? Eu vou adorar saber. Sobre qualquer assunto, os felizes e tristes, de famílias, amantes, amigos, festas, morte, paixão ou doença. Tudo vale. Posso garantir uma escuta atenta e forte.

Email: deniseverasletras@gmail.com

Instagram: @deniseveras1

Ilustração: “Esquema de cores Pantone”. Livre para uso e download gratuito em: https://br.freepik.com/fotos-gratis/esquema-de-cores-pantone_1186318.htm#fromView=search&page=1&position=26&uuid=2d29bed3-2766-4e22-aa4a-339c42706df4

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  1. Outro dia me deparei com um formulário semelhante, solicitando a informação. Respondi rapidamente, pois meu interesse estava além do formulário, parei. Antes de clicar no botão PROSSEGUIR, pensei: “o que interessam essas informações?” Por exemplo: para que o site que me fornece informações sobre o que está acontecendo no mundo, precisa saber onde resido? Que diferença isso faz? Se frequento a página com certa constância, posso acessá-la do Alasca ou das Maldivas. Basta ter conexão, confere? Se sou branco, pardo, negro, azul, vermelho, verde, pouco importa. Não deveria importar, ao menos. A sociedade criou classificações desde seu nascimento. Cabe a nós, cancelar essas regras e buscar o que interessa, ou seja, o bem comum.

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