Entre a ciência e a arte, por Fábio Solon

Construindo o conceito de saúde com os alunos do primeiro período do curso de medicina da UFPI

Entre a ciência e a arte: experiências de um dentista-arteiro e um professor-artista

“Dizem que sou louco por pensar assim”

Tratar da aproximação entre ciência e arte não é temática presente na balada do louco (música dos Mutantes imortalizada por Ney Matogrosso em 1991). Há interfaces já descritas entre estas duas áreas e outras, ainda, que podem ser construídas. De fato, este campo é bastante plural!

Fábio Solon – Artista homenageado V COLAC UFPI

Ao buscar fundamentação teórica para sustentar esta afirmativa, podemos resgatar a filosofia e a educação. A hermenêutica de Gadamer, enquanto dimensão filosófica, trata a arte como forma de expressão para além do belo. Na educação, alguns autores discutem sobre esta relação no eixo acadêmico, seja no ensino, pesquisa ou extensão.

A minha proposta aqui é apresentar uma experiência a partir deste lugar onde atuo. Alerto que isso já garante um viés no meu discurso.

Assim, cabe aqui uma pequena apresentação. Aproveito para tomar emprestado um verso de uma das músicas dos Los Hermanos:

“Olha só, que cara estranho que chegou

Parece não achar lugar

No corpo em que Deus lhe encarnou”

Durante a minha infância, cresci com a referência de artistas e artesãos em casa. Tive o privilégio de ter três exemplos bastante significativos: avó, mãe e tio.

Minha avó Susete ficava horas na sua máquina de costura, reformando suas roupas, inventando moda e preparando fuxicos em chita para compor valiosas peças. Era sempre um motivo de alegria, receber uma dessas peças de presente. Era afeto puro! Além disso, era a materialização da cultura nordestina ali bem perto de mim. Isso se deve pela utilização do tecido de chita que remetia aos vestidos das mulheres da região de cores intensas e estampados com flores de diversos tamanhos. Era alegria, calor e vibração!

Em casa, minha mãe, Heloneida, também desenvolveu a arte em chita. Além do incentivo em casa, durante a sua infância, ela conta que sua escola também havia lhe proporcionado esta vivência. Atualmente, o artesanato ganhou novo significado para ela (acho que não seria delicado mencionar a sua idade… rs). Agora, costuma presentear as pessoas mais próximas e se faz presente e inteira em cada uma das peças produzidas. Segue a tradição familiar e a possibilidade de resgatar memórias incríveis, agora, ressignificadas!

Já meu tio Chico Expedito, era minha referência no campo das artes cênicas e visuais. Lembro da sua ausência nas reuniões de família que eram assustadoramente compensadas por meio da sua atuação na televisão ou no cinema. Durante a infância, foi capaz de reunir a família inteira numa das salas de cinema em Fortaleza para assistir sua atuação no filme “Os Heróis Trapalhões: uma aventura na selva”. É umas das minhas memórias preferidas da infância. Ficamos esperando os créditos do filme para encher aquele salão com gritos e uma salva de palmas. “É meu tio… meu tio!” Em outra fase de sua vida, demonstrou criatividade e delicadeza ao reaproveitar o tecido da cortina da sua sala de estar em telas de pintura.

Se em casa tinha estas referências, isso foi mantido em outros espaços. Passei grande parte da infância e adolescência no Colégio das Irmãs em Teresina. Fui privilegiado em ter a disciplina de educação artística que me possibilitou transitar pela música, teatro e pintura. Levava tudo na brincadeira. Mas quem disse que a gente não aprende brincando, não é mesmo? Além disso, possibilitava a interação e construção de vínculos entre os colegas, o exercício da criatividade e desenvolvia o potencial de atuação em grupos e o espírito de liderança. Confesso que não percebi isso durante esta vivência, mas pude relacionar a experiência de hoje com cada um daqueles momentos.

Em relação a graduação, escolhi a Odontologia! Logo nas primeiras disciplinas, fui apresentado à escultura. Tínhamos que esculpir dentes em cera como estratégia de apreensão da sua anatomia. Tínhamos espátula, cera e régua nas mãos. Era hora de transformar!!! Mais tarde, nas aulas de Odontologia Preventiva e Social, precisávamos desenvolver material de educação em saúde. E lá estava o professor Diniz apresentando técnicas de produção de material a partir de papel, pincel, lápis de cor, tesoura, cola, lixa e tecido. Aquilo ganhava forma e sentido diante de cada uma das apresentações com as crianças nas escolas. Além disso, tínhamos que apresentar álbum seriado produzido por nós mesmos sobre promoção de saúde bucal. Foi punk e incrível ao mesmo tempo!

Já na residência, as disciplinas de Promoção da Saúde e Educação Popular me possibilitaram resgatar mais elementos da arte. Naquela ocasião, somavam-se a dimensão musical e poética por meio do cordel. Era regionalismo puro!!! O desafio era perceber este recurso na comunidade e utilizar a favor do empoderamento.

Tela de abertura da exposição ‘Doce Rede que ventilador’ do V COLAC – artista homenageado, de Fábio Solon

Nessa mesma época, tive a oportunidade de maior convivência com o tio Chico. Ele tinha sido convidado a produzir uma peça para a reinauguração do teatro municipal e permaneceria na cidade por uma longa temporada. Foi naquele momento que mencionei a minha vontade de pintar. No dia seguinte da minha manifestação, estava ele com pincel, tinta e quadro nas mãos, apostando no meu interesse. Era o resgate à infância e à família. Sentia que a experiência com arte funcionava como um abraço da minha família e, em especial, minha avó, mãe e tio.

Ganhei livros sobre técnicas de pintura. Fui incentivado a visitar exposições de arte. Tive em casa a oportunidade de discutir com alguém com expertise na área. Tinha interesse nesse novo mundo que se abria para mim. Enfim, tudo conspirou a favor.

E não de outra! Comecei a produzir loucamente! Em casa, já não havia espaço suficiente. Tinha chegado a hora de expor! E assim foi!

E quem diria que a residência em saúde também me possibilitaria desenvolver a arte fora do eixo acadêmico? Sim, o grupo de profissionais, que se aventurava em jogar vôlei todos os domingos em um dos clubes da cidade, deixou a bola de lado e tomou para si instrumentos musicais. Eu, como não sabia tocar nada, fui desafiado a pegar o microfone e assumir os vocais daquele projeto de banda. Para não passar tanta vergonha, fui estudar técnica vocal. No começo, só existia espaço para a timidez e a insegurança, mas isso foi ocupando o segundo plano, quando percebi que a música reunia e agregava pessoas, além de trazer leveza àqueles momentos intensos de formação e desenvolvimento profissional. Minha mãe, que tocava sanfona e violão na adolescência, curtia cada ensaio, já que a garagem de sua casa servia de ponto de encontro. Depois de muito tempo, me dei conta que aquela experiência tinha me ajudado com a atuação diante de um grande público a partir do exercício de técnicas de respiração e relaxamento.

Todos estes aspectos foram ganhando mais força e assumindo outros significados, quando me aproximei da docência na saúde. A insegurança e o medo de falar em público já não eram elementos tão marcantes. Aliado a isso, a postura em sala de aula, a projeção da voz, a dinâmica e criatividade nas aulas e a utilização de recursos lúdicos foram direcionados para este novo espaço onde atuava. Começava a abandonar a perspectiva de educação bancária (tradicional) e me aproximava, cada vez mais, da vivência de metodologias ativas no processo de ensino e aprendizagem.

Acreditava que o processo de ensino e aprendizagem era uma oportunidade de diálogo, participação e construção permanente e que seria importante reunir esforços e agregar recursos para transformar aquela prática. A arte foi um destes recursos e relaciono a minha postura, a forma de ver o mundo e as coisas, minha trajetória enquanto educando e educador, minha abertura e meu envolvimento com o lúdico como potenciais para isso.

Mas foi no doutorado em que tudo se encaixou! Utilizei a arte como forma de expressão das minhas afetações na pesquisa de campo. Foi um momento de grande amadurecimento acadêmico, ao perceber que poderia canalizar a arte em prol da pesquisa científica. Aqui, a minha aproximação com a hermenêutica de Gadamer me ajudou muito.

Cada encontro com os sujeitos da pesquisa me gerava uma afetação e isso era expresso por meio de desenho, fanzine, cordel ou pintura em tela. Eu tinha vários recursos de arte nas mãos e utilizava qualquer um deles como forma de registro. Assim, quando um participante da pesquisa me falava que “o profissional de saúde não era capaz de perceber as suas necessidades”, uma imagem já era construída na minha cabeça. Talvez isso se justifique pelo fato de que o meu processo de compreensão está atravessado pela arte. É a minha essência enquanto artista sendo ressignificada na minha prática como profissional de saúde e pesquisador.

Fala-escuta-vê, de Fábio Solon

Hoje, meu esforço gira em torno de construir uma possível interface entre ciência, arte e hermenêutica. Não que isso já não tenha sido explorado por outros autores. O que quero aqui é construir caminhos que podem contribuir para a minha formação e desenvolvimento e, também, de outras pessoas.

Construindo o conceito de saúde com os alunos do primeiro período do curso de medicina da UFPI

Acredito que a arte tem esse potencial e pode ser utilizada como recurso de expressão para além do belo, como já dizia Gadamer. Além disso, pode ser recurso para romper com a concepção tradicional de formação e desenvolvimento profissional, assegurando a incorporação do lúdico no processo de ensino e aprendizagem e resgatando a produção, a participação e a interação dos educandos.

Aqui, vale mencionar que a utilização da arte deve estar relacionada com outros elementos, não somente com a técnica pela técnica. A essência, postura e trajetória do sujeito (professor ou pesquisador, por exemplo), assim como o cenário e contexto para a sua utilização são aspectos relevantes e precisam ser destacados. A arte reduzida à técnica se torna artificial e compromete o processo de trabalho.

Hoje, diante de tudo isso, me percebo transformado e em busca de novas possibilidades. Que venham novas experiências e que eu esteja atento e aberto ao novo!

Eu transformado, de Fábio Solon

Por Fábio Solon Tajra.

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