O cão de Schopenhauer, por Alisson Carvalho

O timbre ruidoso oscilou pelo quarto, fez vibrar cada haste de metal que compunha os móveis. Ninguém pensou em nada, além de estrangular o desconhecido. Aos poucos, os hóspedes do hostel saíram dos seus quartos se questionando: aquilo era de fato um barulho humano? Ninguém precisou chamar o dono do estabelecimento, já que ele estava, tal qual os outros hóspedes, ali no corredor tentando entender a origem do estrondoso barulho.
Abriram a porta do quarto e encontraram os demais hóspedes (que tiveram a má sorte de ficar instalados no mesmo cômodo do estranho barulhento) cobertos por um casulo feito artesanalmente com o edredom e tentando, em vão e desesperadamente, tampar as orelhas com o travesseiro.

“Isso é um ronco?”, alguém deixou escapar.

Não teve discussão, aquele hostel prezava pela salubridade e pela sanidade ou bem-estar  dos clientes. Por isso, acordaram o indivíduo e expulsaram-no do lugar sem nenhum constrangimento.

Sob o efeito do sono, o rapaz recolheu seus pertences, pegou a sua mochila e deixou que seus passos confusos o guiassem até as areias da praia de Iracema. Lá, ele deitou em paz e retornou ao seu mundo onírico.
Não que os raios solares do alvorecer daquele B-R-O BRÓ tenham ajudado, mas o rapaz despertou sobressaltado e com a pele ardendo. Ele ficou tentando entender o porquê de ter despertado naquele lugar.
Passou alguns minutos tentando organizar os pensamentos, até que compreendeu que tinha sido expulso do hostel mesmo tendo pago a estadia exorbitante, diga-se de passagem. Por isso, iria recorrer e pedir o estorno do seu pagamento, afinal, ele tinha os seus direitos. Abriu a bolsa, retirou uma agenda cinza e anotou o nome do lugar numa folha cheia de nomes intitulada “Hostels que não devo mais pisar”.
Lembrou que os seus colegas estavam no lugar e não intercederam por ele, preferiram permanecer no conforto dos seus quartos. Nesse momento, veio um fiat e a memória do rapaz se clareou, ele percebeu os reais motivos da insistência dos colegas em dormir em quartos separados. Abriu a agenda e folheou até achar a lista com centenas de nomes, anotou os nomes dos seus conhecidos, agora ex-colegas, na lista intitulada “Lista de inimigos”.
Depois de algumas horas remoendo todas as suas frustrações, ele decidiu ignorar todo o mundo. Colocou na playlist dos favoritos e começou a acompanhar a música da banda Fronteira Blues: “…Baby, me responda o porquê? Do fato de estar, e não me sentir aqui. Sobre meus olhos vermelhos, me apago e meu afago. Nem tão pouco consegui. Sair calado ao teu lado, ao teu lado…”
Um cãozinho aproximou-se e começou a latir e pular ao redor do viajante, que dividiu um pedacinho do seu sanduíche de patê de frango com o novo amigo.
“Pelo menos você não me abandonou e nem me abandonará”, brincou.
O rapaz tirou a sua gaita da bolsa e recordou-se da terra natal com certo desdém, lá não era tão diferente do litoral. Pensou nas semelhanças desagradáveis entre as cidades, enquanto olhava para as pessoas que andavam perto da praia. Elas ignoravam a sua existência, da mesma forma que os transeuntes da sua cidade natal quando ele tocava o seu blues na Praça dos Correios do Dirceu.
Ele esperou o dia inteiro para fazer uma fogueira e criar uma canção de frente para o mar, enquanto pensava naquele dia estranho e mal percebia a luz do dia minguando. Ali, sob o céu (já) estrelado e a companhia do cão, o andarilho criou raízes e espalhou o seu pequeno patrimônio (instrumentos musicais, livros e algumas sobras de comida).
A noite tirou o pouco de coragem que restava no andarilho. Ele caiu sonolento, amortecido pela toalha jogada sobre a areia. Foi só naquele instante que o cãozinho foi conduzido ao estado de quase lucidez, ou seja, quando cruzou a linha da arrogância humana chamada egocentricamente pelos primatas de racionalidade. O pequeno animal percebeu o estrondo vindo das profundezas da garganta do seu novo amigo.
Naqueles minutos ensurdecedores, a sua audição extremamente sensível foi conduzida a um segundo de sensatez, levando o pobre animal a perceber um novo sentimento: a ojeriza. O pavor versus a paixão pelo dono em potencial levou as patinhas do animal às extremidades das suas orelhas na tentativa de bloquear aquele ruído bestial gutural, porém, o esforço foi falido.
O cãozinho observou as ondas do mar, cogitou por alguns instantes a possibilidade de se jogar nas ondas e deixar que as águas tampassem seus ouvidos para conseguir continuar perto do humano. Abdicaria do dom da audição para adotar o humano.
Ladrou dezenas de xingamentos caninos contra aquele som, não admitiu que “aquilo” pudesse fazer parte do seu dono, uivou como um lobo expondo a linhagem consanguínea fossilizada que revelava o parentesco com os primos selvagens.
Desesperado, o cãozinho começou a tentar tecer algum filamento de insight superficial, mas quase complexo suficiente para criar uma deidade e pedir que expulsasse aquela gralha, aquele troço barulhento, de dentro da garganta do humano.
O barulho infernal afastou os pequenos felinos e roedores das adjacências, fazendo com que o cãozinho arrastasse sua própria cabeça pela areia tentando barganhar consigo mesmo o melhor destino: o abandono ou a dor diária daquele ruído.
Seria uma anedota do universo? O tal humano amado estar condenado a carregar aquele mal terrível? O animal chorou, na linguagem canina, claro. Mergulhou numa profunda melancolia até finalmente aceitar o seu destino.
Os raios solares agrediram a pele do andarilho, mas foi o odor que fez o rapaz despertar e se deparar com as fezes do cãozinho quase perto do seu rosto. Foi a única lembrança que encontrou do seu bichinho, aquele enorme monumento fecal jamais entendido pelo primata, mas que na linguagem dos bichos equivaleria ao maior dos agradecimentos ou a pior das injúrias. Quem saberá? Ele nunca mais viu o seu fiel cão.

 

Foto: Victor Martins

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