Remetente onírico, por Alisson Carvalho

Oi, Carla? Pare qualquer atividade que esteja fazendo por alguns segundos e fita a tevê. Consegue ver algo além do vídeo, já dá para perceber a mecânica da produção das imagens? Não deixa a leitura dos fótons deturbar o processo, a leitura dos fragmentos de informações, veja além dos quadros animados. Parece loucura, mas tudo fará sentido depois que você terminar de ler a biografia que deixei sob esta carta.

Carla, minha amiga, eu não tenho muito tempo. Quando você estiver lendo esse bilhete eu já estarei bem longe da cidade, por isso quero que você leia com atenção cada uma das alternativas das minhas suposições sem questionar, embora saiba que sua natureza e curiosidade científica contrariaria esse meu pedido. Enfim, é algo rápido.

Alguma coisa estranha aconteceu, não sei bem o que foi, mas meu pai não retornou e quando digo isso não me refiro à forma como os pais somem e mudam-se de família como o seu, por sinal, parabéns pelo nascimento da sua irmãzinha com aquela mulher desconhecida, agora sabemos que realmente ela será a sua madrasta. Eu me refiro aos gritos que escutei na madrugada. Minha mãe está diferente, acredito que as cicatrizes na sua pele tenham alguma relação com o barulho.

Eu honestamente sempre desconfiei do meu parentesco com o resto da família. Sempre senti uma apartação entre as minhas ideias e as dos meus pais. Por isso, mesmo que você me julgue, eu devo confessar que cheguei a levantar algumas suspeitas sobre a consanguinidade estar atrelada às filosofias defendidas pelas pessoas. Como se houvesse uma herança moral ou transmissão de ideologias. Imagino que você deva ter rido muito disso, mas essa crença já chegou a me macular tal qual um fantasma lamarckiano perseguindo o discípulo menos cético de Darwin. Admitir isso só prova que já superei essa pseudociência.

Eu nasci um ano antes de você e vivi muitas experiências que você jamais sonharia ter vivido com os seus míseros dez anos de idade. E sim, ter onze anos me torna mais maduro. Sou um pré-adolescente inconformado com o silêncio da minha mãe que desde ontem não consegue explicar os motivos do sumiço do meu pai.

Ontem, lendo a biografia de Max Planck, para confrontar a professora em sala de aula, percebi que podemos ter lido a realidade numa perspectiva diferente e fiquei refletindo se tudo que consideramos verdade não é uma mera ilusão. Insisto que devemos retornar aos debates sobre o Mito da Caverna na hora do recreio mesmo que eu já não esteja aqui entre vocês.

De tanto cogitar cheguei a duas hipóteses, na verdade três, mas a terceira está fora do seu alcance de atuação:

  1. Seria possível que as minhas palavras tenham afetado a minha mãe e finalmente ela tenha entendido que o estilo de vida urbano é algo corrosivo, algo destrutivo, e finalmente viveremos no campo cultivando o nosso próprio alimento, sem alimentar a grande indústria.
  2. Pensei também que: se eu sou um experimento psicossocial, a autopercepção da minha condição de cobaia, e sujeito de pesquisa, comprometeu os resultados do experimento, isso significa dizer que agora eu serei descartado para que outros sujeitos sejam analisados nas mesmas condições. Caso seja essa alternativa, garanta que as próximas cobaias tenham as mesmas experiências positivas e construtivas que eu tive estando ao seu lado.

E, claro, mesmo com os seus protestos contra esta minha terceira suspeita – que sempre acompanhou as minhas crenças – eu insisto que acredite ou pelo menos leve em consideração esta possibilidade:

  • 3. Vasculhando o meu passado, descobri tardiamente que não tenho registros com outros parentes e a ausência de fotos dos meus antepassados me levou a crer nesta tão debatida possibilidade: e se os meus pais realmente forem colonizadores espaciais? Tudo bem, você questionaria a semelhança morfológica, mas eu confrontaria a sua pergunta dizendo que se eu pareço um nativo é apenas porque eles devem ter algum tipo de roupa bio adaptável que garanta as condições para sobrevivência neste planeta. Isso explicaria porque nunca gripei e nem precisei ir ao hospital quando caí da mesa da cozinha e ficamos brincando com a maleabilidade da fratura exposta, que você e a enfermeira insistiram em dizer que se tratava de um mísero corte na minha epiderme mesmo eu e meu corpo discordando prontamente daquele diagnóstico infeliz, afinal a dor era de um osso, insisto: era um osso!

Se eu estiver certo, vibrarei durante a minha nova vida longe da via láctea e talvez algum dia eu consiga permissão para te levar comigo, quando já não precisarmos de tutores e as leis dos nossos planetas permitirem a nossa livre locomoção pelo universo como autores responsáveis pelas nossas próprias ações.

Enfim, Carla, espero um dia que possamos problematizar e assistir aos desenhos como sempre fizemos. Espero que goste do livro sobre o Max Planck e possa entender como surge a imagem nas tevês, quem sabe possamos assustar as nossas mães empregando as palavras-conceitos, do livro sobre o Max, nas nossas conversas simulando aquela atitude blasé típica nos grandes intelectuais.

Creio que será melhor você esquecer quem eu fui, pelo menos por algum tempo, só para evitar que sofra e para garantir o seu sorriso sarcástico sempre cativante. E, por insistência da minha mãe, não poderei saber o meu destino, menos ainda continuar trocando confidências com você. Por quê? Não sei, só sei que são sugestões de segurança que associei ao desaparecimento do meu progenitor. Até um dia, minha grande amiga terráquea!

Foto:  Jonathan Dourado

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