O Salão do Livro do Piauí e a pergunta primordial

Foto do Cantinho da Geleia Total no Salipi de 2023. Em destaque uma escultura de Torquato Neto com asas de anjo torto.
Foto por Caio Negreiros

 

No espaço de discussão que sucedeu a palestra de Adriana Calcanhoto, que encerrou o Seminário Língua Viva do Salão do Livro do Piauí 2023, uma moça nascida em um bairro pobre de Teresina disse que o pai cantava para ela canções da cantora e compositora de Porto Alegre. Ela cresceu ouvindo-as e se emocionando, de modo que essas canções fazem parte de sua vida. Foi um depoimento emocionante. Exemplo do que o SALIPI pode gerar em termos de criação e entrelaçamentos humanos.

Entre outras coisas, o que muito interessa quando se fala de literatura são os (re)encontros entre seres humanos, o andar junto, a cumplicidade estética, afetiva, existencial. Naquele momento em que a moça ficou cara a cara com Adriana Calcanhoto e as duas puderam aprofundar o vínculo, ocorreu um tipo de comunicação fundamental para a existência da raça humana.

Logo após a palestra de Adriana Calcanhoto, houve o show de Vanessa da Mata, autora do romance A Filha das Flores, publicado pela Companhia das Letras. A multidão vibrou com seu estilo vigoroso-flutuante. Problema de público não houve.

Foto por Caio Negreiros

A fama e o sucesso têm seus lugares no SALIPI. São ímãs que atraem. Mas onde não há fama nem sucesso nem badalação, há também tesouros preciosos. Foi o que aconteceu, por exemplo, no bate-papo literário com as escritoras piauienses Laís Romero (poeta) e Ananda Sampaio (cronista). Havia pouca gente, ao que se saiba ninguém gritou ou se esperneou para encontrar um lugar. As duas lançaram seus livros Mátria e Amor, Fim de Todas as Coisas. Cativaram os afortunados que foram vê-las e ouvi-las.

Perto dali, no espaço da Estação Letras e Expressões, Marilene Felinto, pernambucana radicada em São Paulo desde os onze anos de idade, e o escritor paulistano Luiz Francisco Carvalho Filho, falaram sobre suas diferentes trajetórias de escritores, para um público muito interessado, porém pequeno. Marilene, que também é jornalista e escreveu o livro de crônicas Jornalisticamente Incorreto, trouxe a nova edição do seu romance As Mulheres de Tijucopapo, de 1982, e o livro de contos Mulher Feita. Menos falante e inquieto que Marilene, o escritor paulistano falou sobre Newton, que Feliciano Bezerra, ótimo mediador, leu, achou bom e disse tratar-se de um romance experimental. Igualmente, houve pouca gente para ouvir a excelente e informativa palestra do tradutor e ensaísta Floriano Martins (CE) sobre a tradição lírica da América Hispânica, com ótima mediação de Demétrios Galvão.

É impossível participar de tudo que acontece no SALIPI. Além do considerável número de palestras, bate-papos literários, lançamentos de livros e apresentações musicais, alguns desses eventos ocorrem simultaneamente. Nem errado nem certo. É um jeito de ser. Mas às vezes complica. Ocorre de o convidado falar para pouca gente, mesmo sendo bom comunicador e tendo muito a dizer. O participante tem que selecionar o que deseja ver, tarefa muitas vezes difícil ante as boas opções. Mas há também a possibilidade de acompanhar pela internet, em tempo real (existe tempo irreal?), ou ver depois, já que as palestras ficam gravadas, acessíveis pelo site.

O SALIPI deste ano incorporou a personagem histórica Esperança Garcia, um dos símbolos mais fortes da afirmação negra. A carta escrita por ela em 1770 é um documento precioso, fonte de inspiração para os que lutam contra violência e discriminação e para os que desejam fazer pesquisa histórica e social e produzir arte. É o caso, por exemplo, de João P. Luiz e Bernardo Aurélio, que criaram a história em quadrinhos A Voz de Esperança Garcia, objeto do bate-papo literário com os autores. O professor e poeta Elio Ferreira é outro que estuda a carta e a vê sob o prisma da linguagem. Ao debate que se seguiu após sua palestra, ficou visível o engajamento crescente de estudiosos que estão pesquisando o assunto.

Esperança Garcia fez vir ao SALIPI pessoas que se destacam no movimento negro em todo o país, como Zezé Mota e Djamila Ribeiro. Abriu caminho para as vozes indígenas, que cada vez ganham mais espaço e importância nas discussões sobre a contemporaneidade brasileira. Daniel Munduruku, Kaká Werá e Aliã Warmiri Guajajara mostraram como a sabedoria dos povos chamados tradicionais tem muito a nos ensinar.

Talvez esta tenha sido a edição do SALIPI com mais abertura para o que se chama de diversidade, relacionada com as múltiplas possibilidades de expressão das subjetividades. O cenário é plural e reivindica esforço de compreensão. Designações como literatura feminina, literatura indígena, literatura negra, literatura LGBTQIA+ povoam as tentativas de apreensão desse fenômeno atualíssimo.

Quem fez uma leitura perspicaz foi o escritor Jeferson Tenório, não no SALIPI, mas no FARPA – Festival Arte da Palavra, ocorrido em Teresina, em junho. Para ele, o racismo não é tema de literatura porque em verdade a literatura se ocupa de tudo que é humano. Se está presente numa obra, assim ocorre não como tema, mas porque é humano. Além disso, não é o tema que define a qualidade estética de uma obra. Sob viés semelhante, João Silvério Trevisan, muitas vezes rotulado de escritor gay, em certo momento da sua memorável palestra, levantou-se da cadeira e afirmou enfaticamente: “Eu sou um escritor brasileiro!” No final das contas, o que vinga é a literatura.

Desde a edição passada, o SALIPI incluiu na programação as oficinas ou cursos de criação literária, com ênfase na poesia. É uma das atividades mais seminais, embora sem a participação que seria desejada do público. É porque nestas oficinas pode-se ir mais fundo nas questões da linguagem e na feitura de poemas, ali mesmo, na hora. Os desafios começam pelos títulos: A Quadrilha de 80 anos em Os Três Mal-Amados: versar o amor a partir de Drummond e Cabral (Mariana Basílio – SP); Do poema à poesia (Nina Rizzi – CE); Provocações poéticas (Suzana Vargas – RJ) e A mais preci(o)sa (des)atenção (Tarso de Melo – SP).

Ainda sobre autores locais, sou tentado a falar de quatro cronistas que lançaram ou relançaram seus livros: Ananda Sampaio (Amor, fim de todas as coisas); Chagas Botelho (Olhar de Casca de Banana); Clarissa Vilar (Saudades reembolsáveis) e Denise Veras (A face atravessada no espelho). São sinais de que a crônica está viva. Sobre o bate-papo literário com Paulo Gutemberg, que fez uma inteligente leitura de Teresina a partir da tríade fotografia-história-linguagem, e o bate-papo alusivo aos dez anos da revista Acrobata, com Demétrios Galvão, Thiago E e Aristides Oliveira. Quem esteve presente em “stand” muito visitado foi o grupo Geleia Total, que elegeu as produções locais como foco das suas retinas, nunca fatigadas. Finalmente, a intervenção poética Escuto Histórias, Faço Poemas, de Ithalo Furtado, fora da programação oficial. Estas, como muitas outras, foram boas de ver e de se tirar o chapéu.

A festa acabou. Depois que as luzes se apagaram e todos foram embora, veio o cansaço e a vontade de estar, de teimoso, no SALIPI do próximo ano para, como diria o poeta Tarso de Melo,

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olhar para tudo como se pela primeira vez.

 

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