POESIA EM ERUPÇÃO

De Oeiras vem a boa nova do livro de estreia de uma poeta nascida naquela cidade. O lançamento ocorreu no Solar das 12 Janelas. O nome solar vem em socorro de uma nobreza mais idealizada que real. Mas o livro é bem-vindo, como o sol. A poeta Paula Nunes Alves, com Explosão das Chananas, diz por que está neste lugar, nesta hora.

Vamos começar definindo os termos. Trata-se de uma poeta lírica que constrói sua poética e a enuncia no poema intitulado Poética, em que se despe de Homero, tido como o autor fundante da poesia no Ocidente. Elege a concisão como mandamento poético. Cultiva a ascese. Prefere o eterno ao fugaz. Reconhece a importância do silêncio e do fogo que destrói. Acredita nas flores, no orvalho e no Sol, mesmo que tudo se transforme em cinzas.

Poética

 

despir-se da poética homérica

do excesso de palavras

abrir mão do desejo

dos espaços entre os versos

despir-se do tempo fugaz

 

reconhecer a força das rochas

encontrar o silêncio

das flores que se banham de orvalho

do fogo que transforma

tudo em cinza das horas

do sol que rasga a aurora

 

Paula Nunes Alves não se instala na torre de marfim. Não esconde ou nega a realidade. Podemos aqui lembrar o poeta Manuel Bandeira, que em Nova poética instituiu a “teoria do poeta sórdido”, isto é, aquele em cuja poesia há a marca suja da vida. A marca suja da vida está na poesia de Paula Nunes Alves, como em Poema Podre:

 

Poema podre

 

Um dia não existe mais carne

Um dia nos tornamos

Livros de páginas carcomidos

 

O papel corroído

A foto devorada

Por cupins que também não existem mais

 

Morremos cada um a seu dia

desfaz-se o livro da vida

 

Se ainda houver vermes a te comer

Descansa na terra este enigma

Olha o futuro que apodrece

 

Paula Nunes Alves é uma poeta que trafega por variada temática, mas podemos afirmar que há os temas preferidos. Natureza. O Feminino. Erotismo. Oeiras. Amor. Morte. É paixão da autora cantar a flora e os pequenos seres fascinantes. Daí as chananas, os ipês, o caju, as carnaúbas, as borboletas, a chuva… O poema a seguir é uma celebração da Natureza, com imagens inspiradas numa árvore que tem presença luminosa na geografia piauiense.

 

Ipê roxo

 

a bruma vaporosa

de pétalas roxas em balé

voa sertão adentro de ti

 

é a língua milenar das árvores

verbo subliminar da existência

 

acima do chão

escorre seiva

pelo caule lenhoso

 

raízes como dedos

perfuram a solidão

 

pétalas beijam

a face da Terra

 

O feminino ressoa no livro como uma das vozes mais potentes. Às vezes, essa voz se apresenta solitária, órfã no mundo, como uma voz proibida. Exemplo disso é o poema Clandestina (“Com olhos brilhando / uma mulher sozinha / Seu sopro é silente / para não acordar a boca faminta do universo”). Mas é em Sangue que a voz feminina surge como um vulcão, tal a força contida, que explode também como fúria primordial:

 

Sangue

 

Há mulheres como lobos

difíceis de calar

E são doces e tempestuosas

respiram e bebem nos olhos

 

De tesoura nas mãos cortam o tempo

Se passam por tuas ruas e esquinas

deixam espinho e flor

 

Essa mulher é a que sangra todo mês

uma vida inteira, explode e entra em erupção

 

Devastadas eras recomeçam

São mulheres que sangram

uma vida toda feita em sangue

 

Como não poderia deixar de ser, a potência feminina é também expressa em erotismo, às vezes explícito, às vezes apenas sugerido. O próprio título do livro pode ser entendido como uma metáfora. Não só chananas esplendem na rachadura, mas também a mulher no seu discurso verbal e principalmente corpóreo, mesmo que o corpo feminino apareça entre imagens fugidias.

Explosão de chananas

O perfume inundou os cabelos

O desalinho do pelo

a cama vazia cheia de sonhos.

E os astros, testemunhas visíveis no Morro do Leme,

beijam-se escondidos nas nuvens.

 

Corações acelerados cobertos pela noite

despertam chananas na rachadura da escadaria.

Folhas sacodem murmurando.

É a hora do adeus.

As mãos entrelaçadas dançam ao vento.

 

Quem não canta por instantes?

O amor primeiro não será o derradeiro?

Estrelas brilham na relva distante

 

Nos poemas dedicados a Oeiras, Paula Nunes Alves veste o trágico de lirismo. A cidade é um tema difícil e a poeta percorre seus enigmas com delicadeza, mas também com espanto. No poema Cartão-postal, ela não renega a beleza da Praça das Vitórias, mas problematiza a visão de cartão-postal, a partir das tias-avós, que envelhecem fixadas na calçada como se fossem árvores. No final do poema, a poeta se dá conta de que não é mais criança. Por isso, o medo de “ficar grande”, isto é, envelhecer e reproduzir a trajetória dos antepassados.

Já no poema Refúgio, a beleza de uma tarde de domingo é o espaço para o destino descansar no fundo da casa grande. Mas a poeta não engole a pílula dourada de Oeiras. Por isso, nem tudo é placidez nesse poema. “O homem do leite” ordenha “a vaca desse pouco pasto”, que certamente remete à pobreza econômica e existencial. Quem desalinha a “mesa dos santos” é o vento. Nesse caso, não é a vida social ou política, mas um elemento da natureza que desconstrói a aparente paz da religião. Nem mesmo os estudiosos e pesquisadores fazem isso. Mas a poeta põe sutilmente o dedo na ferida.

 

Portanto, nem tudo são flores de chananas e de ipês, ou banhos de chuva, na poesia de Paula Nunes Alves. Em vários poemas, ela explode, e essa explosão é um grito de indignação e revolta. Os poemas Sangue, Tríade Arcaica, Nau Nua, Migalhas de Seda e Escárnio são exemplos de quem não se conforma. O poema Negro Olhar é também um exemplo desse grito potente que ressoa:

Negro olhar

 

I

 

sonho teu negro olhar

sou tua fuligem

branca, negra, mãe, puta, louca, atônita

me alongo atomicamente

passo catatônico

desliza partículas minha vertigem

 

faz escuro na fumaça do ar

me atiro

na periferia

me agito

digo-grito

poesia

 

II

 

que não me traiam o pensamento e a magia

estou armada com palavras malditas

deusas riem de mim

me atiram ao vento

 

sangro nesse terreiro

lembro do negro olhar no quilombo de minha alma

e meu grito encontra tua língua

porque a paz essa branca paz nunca foi meu lugar

acordada ainda estarei sangrando

não serão balas mas mordaça

 

Explosão das Chananas é uma boa estreia em livro. Ensina, comove e principalmente nos inquieta, como obra de pertença da poesia lírica brasileira contemporânea, dilacerada em seu verbo conciso, cortante, sem trair delicadeza e suavidade. É também um convite (ou uma ordem) para se abrir o peito. Como se abre um peito? Em Cardíaca, poema que fecha o livro, ela diz: “se abre um peito vivendo”. Concordo. Mas digo pra vocês: se abre o peito lendo-se a poesia de Paula Nunes Alves.

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