4 anos, 11 meses e 22 dias pro luto

É interessante observar como as pessoas lidam com um luto que não é diretamente delas. Não estou, com essa observação, querendo invalidar os sentimentos das outras pessoas ou suas reações. Mas, precisava compartilhar a maneira como vejo isso, agora que estou eu mesma vivendo mais um luto. O maior da vida.

Já fui coadjuvante de muitos lutos. Se parar pra pensar a vida toda estive nesse papel de carpideira, mesmo quando ainda nem sabia o que essa palavra significava.

Quando eu tinha 4 anos, 11 meses e 22 dias a minha mãe adotiva faleceu e encarei a morte de forma mais próxima. Dentro de casa, pra falar mais precisamente. Vi meu pai muito sofrido. Adoecido. Perdido na sua identidade. Tal qual aquela música do Paramore que sempre me traz essas cenas à mente:

“When I was younger, I saw my daddy cry
And curse at the wind
He broke his own heart and I watched
As he tried to reassemble it”

Lembro de anos mais tarde ele me relatar como tinha sido o momento em que recebeu a notícia do falecimento dela. Estava em casa descansando depois de passar a noite no hospital e teve que retornar à Casa Mater, onde ela estava internada, para as providências burocráticas. Meu pai evitou muitas vezes transitar pela rua onde esse hospital funcionava, numa tentativa de evitar as lembranças. No dia fatídico, uma vizinha amiga nossa o ajudou a atravessar a avenida porque ele não conseguia ver nada em sua frente. Muito menos os carros se enfileirando numa velocidade, menor que a de hoje talvez, suficientemente perigosa para causar mais uma tragédia naquele dia. “Minha cabeça estava leve”, ele descreveu.

Essa sensação de leveza no juízo eu nunca tinha conseguido compreender e visualizar, até o dia em que tive que resolver os detalhes da certidão de óbito dele, dois meses atrás. Andei pela rua do Plantão Funerário, a mesma do Hemopi e do Hospital Getúlio Vargas em Teresina, e só pensava em como a vida é cíclica e que em algum momento alguém vai estar resolvendo essas mesmas questões por mim. E principalmente, em como finalmente vivenciei a tal sensação física da cabeça esvaziada.

Aliás, o corpo inteiro parecia muito aéreo como se eu estivesse inapta a me equilibrar dentro de mim mesma. Como se a qualquer instante eu fosse me perder e trocar os pés numa queda. Como se fosse ser amparada pelo asfalto em brasa. O fio prateado que me ligava a ele, de certa forma, me dando segurança para ir e vir a vida inteira, tinha se partido. Não de súbito. E não por isso foi menos traumático e doloroso. Agora acho que sei como ele se sentiu naquele setembro de 1989.

Apesar da dúvida, continuei andando sem cair. Assinei papeis, peguei um ônibus e fui pra universidade. Não deu pra ir no cartório encerrar o assunto naquele mesmo dia, pois precisava realmente comparecer à aula. Já tinha faltado demais. Passei mais de uma hora na fila do restaurante universitário lendo e tendo crises de ansiedade sequenciais à espera do almoço. Ataques que vieram não somente pelo luto, mas, sobretudo, por estar lidando com uma imensa leva de pensamentos intrusivos e insistentes sobre a minha suposta saúde frágil. Segui tentando manter o semblante sereno, enquanto a hipocondria não falhava um minuto em sua missão de me enlouquecer ou de me levar pro pronto socorro.

Foi muito louco, pois ao mesmo tempo em que a cabeça se via flutuante ela também representava um peso imenso naquele instante. Tudo se transfigurava em sentença, fatalidade e pessimismo. Nenhum problema tinha fácil resolução. As mais variadas questões que antes pareciam ter algum desfecho positivo no horizonte, simplesmente se fechavam em inevitabilidade, atraso e uma queimação profunda na boca do estômago.

Voltando ao luto das outras pessoas, não pude deixar de notar as diversas manifestações já que meu pai era um homem imensamente amado mesmo que ele não acreditasse muito nisso. Teve quem chorasse copiosamente e eu nem esperava, teve quem eu esperava e nem deitou palavra. Teve quem me abraçou e quem rezou quando eu não tinha mais voz. Teve quem mudou a foto do avatar com a inscrição luto e teve quem professou a sua fé na tentativa de me consolar.

Mais uma vez reitero que não estou tecendo críticas sobre as maneiras que cada um expressa seu sentimento de pesar. Tudo é válido. Mas, o que ficou em mim de todos esses dias vivendo uma nova realidade, sem os cabelos brancos do meu velho ao alcance da vista, é que o luto de alguns é mais performance do que qualquer outra coisa. É sobre como as pessoas vão enxergar a dor que se vive e não a vivência genuína do sentimento.

Afirmo tudo isso do alto da hipocrisia de quem já criticou textões no Instagram para destinatários que nem sabem que essa rede social existe, e a primeira atitude que tomou depois do sepultamento foi lançar por lá meio mundo de palavras pra botar pra fora o que tava sentindo. Como pessoa que escreve me vejo num paradoxo aqui, já que deveria ser a última a criticar expressões diversas de sofrimento e sentimentalismo, mas também não consinto me ver calar.

Por agora deixo estar essas constatações que, mais dia menos dia, podem mudar. E por falar em dias, eles estão passando e é tempo de reaprender a ser eu. Ou aprender a aceitar que não vou voltar a ser quem um dia já fui. Uma constante batalha de (re)construção de identidade, na qual sempre penso que quando mais jovem eu era mais feliz, graciosa, piadista, esperançosa, ingênua, apaixonada e menos órfã. E era.

Não vai ser fácil conviver só com as vozes da minha consciência dizendo que não fui feita pra esse mundo – e nem estou me referindo a questões religiosas ou algo que o valha. Já me sentia não pertencente muito antes que qualquer conhecimento de espiritualidade tivesse tido a chance de me tocar. É mais amplo e mais profundo do que isso.

Talvez tenha chegado o momento de virar árvore para espalhar as raízes que só brotam de mim mesma.

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