CORAGEM

Foto: Ana Cândida

Tenho raiva e sou mulher. O que é perfeitamente redundante de se dizer, posto que se é mulher, a existência lhe impõe a raiva, ou não imporíamos nós a nós mesmas a sobrevivência. Das coisas que profundo me entalam de raiva as palavras, porque as seguro com os nós dos dedos presos, é esta coragem estúpida dos homens, que jamais ocorreram de pensar mais do que, sendo generosa, duas vezes em ser tão cruamente um homem. E aqui estou eu, com raiva e mulher e umas quantas pilhas de textos encarando as poeiras, que encaram os ácaros, que encaram o tempo, que me encara e eu que me encaro de volta e há a raiva. Não nos servem os tapas nas costas e sorrisos pela venda sucedida de uns quatro versinhos miados de ruim, mas artísticos, conceituais, revolucionários. Também não faria questão. Mas estamos aqui escrevendo, embaraçando e desembaraçando um acento no outro, porque há algo faltando. Talvez uma costela, um lado mal mordido, uma história meio mal contada, um tempo em silêncio que nos deu não o intuito do grito, mas a leitura do silêncio onde reside esta coragem tão selvagem e agasalhada. E apesar disso, ou justamente por isso, não me interessa mesmo assim a estupidez corajosa. Não interessaria ser brilhantemente medíocre, mesmo a algum custo, mesmo por esta fé delirante em esparramar-se pela folga de nunca ter precisado ser outra coisa além de corajosamente estúpido. Mas há a raiva, porque parece não ter prazer algum em ocupar um lugar que qualquer outrO ocuparia sem muito pensar. Ando profundíssimamente em agonias e tenho vontade de coçar-me o corpo inteiro, eu que sou alérgica a poeira e a ácaros, e que sobre eles dedicaria uma folha de papel inteira e poria sobre a barricada a minha frente que sobretudo encara. E quando desfizesse tudo em um espirro, veria que isto é a coragem.

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