AGORA QUE PULAMOS SETE ONDAS E O CARNAVAL VAI COMEÇAR…

A gira, o ritual, começa, depois de breve oração e invocação a Ogum, e a Cambona passa com o defumador, exalando o odor das ervas, enchendo o salão de fumaça. Todos estão a postos em círculo. O momento é solene. As pessoas vestidas de branco e com os colares de contas coloridos nos pescoços. As mãos estão estendidas, em uma atitude de recebimento. Os olhos estão fechados. A Mãe-Pequena passa derramando água-de-cheiro, que logo são passadas nas testas, nas têmporas, nos braços e cotovelos.

O movimento é padronizado, todos os fazem de maneira quase igual. Depois de girar lentamente, de braços abertos na horizontal, sendo defumada pela cambona, uma das filhas-de-santo recebe a água-de-cheiro em suas mãos, esfrega na testa e logo curva-se e esfrega em seus pés: primeiro passa em um e depois no outro. No ar, paira um cheiro de Terreiro, um cheiro fresco de lavanda, misturado aos incensos e ao amargo-amadeirado intenso das ervas que queimam no turíbulo. A luz das velas tremulando numa noite em que fazem 35° graus Celsius. 

Uma música me vem à cabeça: A sala tá cheia, minha gente, como é que eu entro agora? A sala tá cheia, minha gente, como é que eu entro agora? Eu entro, minha gente, eu entro! Com Deus e Nossa Senhora! Eu entro, minha gente, eu entro! Com Deus e Nossa Senhora! Assim, fico a cantarolar essa música em pensamento, enquanto sou defumado e passo o perfume em minhas têmporas, mas o silêncio é quebrado e meu pensamento musicado é interrompido por outra canção, agora cantada no salão.

Os tambores rufam, o triângulo e o ganzá anunciam-se. Os tamborzeiros, os músicos, com seus corpos suados de afinar os atabaques na fogueira lá fora, bradam altissonantes e em uníssono o Êh Maranhão é terra da Makumba! Êh Maranhão é terra da Makumba! Eu deixei makumba lá e vim baiar no Piauí!

As saias farfalham em uma roda que gira em sentido anti-horário. Dona Teresa Légua baixa. É um momento de muita alegria, as cambonas trazem o chapéu de couro, a entidade tira o lenço de cabeça que haviam colocado e amarra-o com um nó para trás, deixando duas longas pontas nas costas. Coloca o chapéu sobre a cabeça com o lenço, trazem-lhe um cachimbo com fumo e uma vela branca já acesa.

Agora que o reveillon passou e você usou o branco de Oxalá, pulou as sete ondas para Ogum, entre outras coisas; agora que o carnaval anuncia-se e que sairemos em bloco, em procissão, ao som de batuques e até de pontos cantados aos guias, posso dizer do paradoxo que é o Estado mais católico da federação ser também um dos Estados mais umbandistas da região. 

Acho isso lindo, acho isso mágico, mas esse mesmo Estado é um dos mais preconceituosos e intolerantes, sem dúvida. Meu intuito, com esse breve texto, é mostrar o quanto as religiões afro-brasileiras permeiam nosso dia-a-dia piauiense, embora não nos demos conta do quanto elas enriquecem nossa cultura e cotidiano, colaborando com marcos importantes em nossa localização, identidade e pertença.

Muitos de nós adentramos vários ambientes, desde a casa de nossas avós até consultórios médicos, e acabamos por encontrar espadas de São Jorge ou de Iansã na porta de entrada ou sobre mesas, bem como potinhos com sal grosso e alho, dentre outras coisas, como um atestado explícito do quanto no nosso inconsciente coletivo, nas nossas práticas culturais e suas formas de transmissão fluida e assistemática, habita o respeito ao sobrenatural para além da cristandade, à magia que ele tem.

E falar disso é ter que assumir a influência negra e indígena em nossa história, em nossa construção e constituição, mas que foram apagadas, dando lugar somente a uma estória de homens brancos. Outro dia mesmo eu falava sobre a cidade onde nasci: antes de Teresina, havia a Makumba.

Fico a me questionar porque essa história não nos chega. Fico a pensar porque não sabemos onde fica a antiga Rua dos Negros (Rua Augusta), na Freguesia das Dores. Porque a cidade não guardou essas memórias, memórias de perseguição aos batuques e festas que ali se realizavam. Nada contra, mas porque só nos pintamos e nos apresentamos como católicos apostólicos romanos, muitos de nós que recorremos à intelectualidade de vários sacerdotes e sacerdotisas de religiosidade afro-brasileiras aqui nesta cidade?

Teresina, por exemplo, nasce de um território extremamente mágico: a Vila do Poti. Ali onde hoje ergue-se um ser tragando mulheres, onde os rios encontram-se, era um território de passagem e de estabelecimento dos indígenas da etnia Poti e também de muitos negros, que fugiam das violências a que eram submetidos. 

Era a Barra do Pontal, local de chegadas e partidas, portal para o sertão e para o litoral, um território Makumbeiro, pois ali havia, escondido nas matas, numa dada fazenda, o salão de Chica Galvão uma líder que poucos conhecemos, mas de suma importância para a religiosidade que aqui se faz (não só a afro-brasileira). Era ali que, posteriormente, estaria situada escondida também entre a vegetação, por conta das violências do Estado Novo de Getúlio Vargas, a Tenda Espírita Santa Bárbara, a primeira de Umbanda da Capital.

Muitos negros e negras, ao construírem esse nosso Estado, o construiam cantando e invocando suas entidades, penso eu. Muitos adoeceram e até morreram de doença e fome ao levantarem prédios em Teresina, lembre disso toda vez que andar pelo centro da Capital.  Para combatermos os preconceitos que aqui se fazem, precisamos rever a história, ampliá-la, desvendar o quanto ela é preta também. 

A nossa história não é muito branca, ela é somente branca. O brado de Esperança Garcia é urgente: “ponha os olhos em mim”. Ponhamos, pois, os olhos nessas questões. Ponhamos os olhos nas múltiplas religiosidades que aqui se expressam. Ponhamos os olhos no Poti Velho, na Boa Esperança sendo massacrada dia a dia. Ponhamos os olhos nas intolerâncias e racismos que cultivamos no cotidiano, ainda que recorramos (às escondidas) aos conselhos de pretos-velhos e outras entidades! 

Agora, que o carnaval vai chegar (e que bom), lembremos de educar as nossas e os nossos  para o respeito, tenhamos o compromisso ético e fundado na justiça de mostrar-lhes a nossa completa história e constituição. O Piauí intolerante não conseguirá fugir de sua história negro-makumbeira. O monstro que traga sua mãe (uma deturpação cristã de uma lenda indígena, em que o Cabeça de Cuia é um encantado das águas, um protetor transformado em monstro) é muito sintomático de um território que traga sua ancestralidade, suas mulheres (constituindo somente homens brancos como heróis); de um lugar que traga a si mesmo, perdido num cosmo vazio e forjado.

Agora que o carnaval vai chegar, olhemos com cuidado para essas questões, até que pulemos as setes ondinhas de Ogum Sete Ondas novamente. 

Saravá!

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