AS ABELHAS DO PIAUÍ, AS ARTES E AS ARMAS DE LEONARDO DA SENHORA DAS DORES CASTELLO-BRANCO

Na última estrofe de Leonardo, diz H. Dobal: “Leonardo sempre / cedo demais teria vindo”. Com aquele poema épico, que faz parte de O Tempo Consequente, livro de estreia de Dobal, este fez justiça ao poeta piauiense Leonardo da Senhora das Dores Castello-Branco, nascido na margem esquerda do Rio Longá, na Fazenda Tabocas, hoje pertencente ao município de Esperantina.

 

Cedo demais teria vindo porque era um homem à frente do seu tempo. E demonstrou isso não apenas através dos livros de poemas que legou, e outros, como Astronomia e Mecânica Leonardina. Foi um poeta que pegou em armas nas lutas no Piauí pela Independência do Brasil, proclamando-a pelas vilas por onde passou, à frente dos guerreiros que arregimentou. Vítima de uma cilada, foi preso após passar o Rio Parnaíba, “na ocasião em que distribuía a sua Proclamação, datada do quartel de Piracuruca”. Preso político, foi enviado para a cadeia do Limoeiro, em Portugal.

 

Mas os ideais e ações libertárias de Leonardo não sucumbiram ao cárcere e aos cuidados. Ao voltar ao Piauí, tomando conhecimento da Confederação do Equador, ingressou naquele movimento republicano. Foi novamente preso. Não estava brincando de revolução. “Não vivendo só de pensar / mas fazendo e acontecendo”, como diria Dobal no poema soberbo, Leonardo dedica-se de corpo e alma a muitas artes, como a invenção do moto-contínuo e a criação de uma barca de navegação pelo Rio Parnaíba.

 

A máquina-miragem devorando

O sonho o mesmo sonho lhe devolve.

 

(…)

 

A aguadoce do Parnaíba

jamais veria a barca

arca de Leonardo.

mas muitas águas passaram

água salobra sobre as palavras

e os pensamentos de Leonardo.

 

As artes de Leonardo, “hábil nas cavalhadas / e na mecânica do verso / sangue sem fruto guerreiro preso / nome escrito / na água mais breve”, como se inscreve no épico dobaliano, dariam muitos frutos. Mesmo os que aparentemente não vingaram, deixaram o exemplo de quem viveu “fazendo e acontecendo”. Talvez por ser e estar muito à frente do seu tempo, tenha sido incompreendido e erroneamente avaliado como poeta, estudioso e revolucionário.

 

As apreciações sobre a poesia leonardina foram muitas vezes pautadas na sentença de Clodoaldo Freitas sobre A Creação Universal, que afirmou tratar-se de “um livro ilegível, sem elevação de estilos, sem arte, cheio de pueridades” (…) sem “uma página, uma linha que possa merecer a posteridade”.

 

Em excelente artigo sobre preliminares para o estudo da poética leonardina, Zuleide Freitas afirma que é necessário tomar a crítica de Clodoaldo Freitas sob outro prisma que não o pessoal “e se busque apoio, sobretudo, na moderna teoria literária, a fim de validar ou refutar, a bem da literatura, essa espécie de sentença oracular”. Lembra também, embora com reservas, que Lucídio Freitas, filho de Clodoaldo, considerava A Creação Universal o marco inicial da literatura piauiense.

 

Não é objetivo deste texto analisar a poesia leonardina. Os parágrafos anteriores servem apenas para situar a primeira edição em livro da Memória Acerca das Abelhas da Província do Piauí no Império do Brasil, de autoria de Leonardo da Senhora das Dores Castello-Branco, a ser lançada no próximo dia 14 de setembro, na Livraria Entrelivros, em Teresina, com o selo da Nova Aliança Editora.

 

O manuscrito da Memória veio a lume em 1842, sendo publicado em Periódico Mensal da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, no Rio de Janeiro, em 1845. A atual edição foi organizada e anotada pelo poeta, professor e pesquisador Halan Silva, que também fez o meticuloso trabalho de atualização do idioma português usado no século XIX no Brasil.

 

Como o título indica, é um texto em prosa, fruto da observação direta do autor. No prefácio, Halan Silva afirma que o hábito de criar abelhas nativas sem ferrão decorre da convivência do colonizador com os indígenas, mas que Leonardo ia além do hábito, pois as observava “de maneira deliberada, criteriosa e racionalmente”. Isso, porém, não induz classificar Memória como um texto científico. Para tanto, afirma Halan, seria necessária a validação póstuma da obra pela comunidade científica.

 

Pode não ser ciência dentro dos conformes, mas ninguém vai negar que Memória contém informações e saberes que não se devem desprezar. No mínimo, fazem parte da “ecologia dos saberes” preconizada por Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português, que acertou o alvo ao afirmar que o conhecimento científico é hoje “a forma oficialmente privilegiada de conhecimento”. Sua importância é incontestável, mas confere “privilégios extracognitivos” a quem os detém. Há conhecimentos importantes produzidos fora das academias e dos laboratórios. Daí ser necessário, segundo aquele autor, integrar os vários tipos de conhecimentos, de forma dialógica e colaborativa.

 

Ao que se saiba, Leonardo da Senhora das Dores Castello-Branco não tinha laboratório, em sentido estrito, para investigar as abelhas. Certamente possuía um laboratório a seu modo inventivo. Observou e registrou a existência de 24 “espécies e variedades” na província do Piauí, “não incluindo a Mombuca, que é habitadora das extremas com o Ceará”. Relacionou os nomes, entre eles, a Tiúba, a Uruçu, a Tataíra, a Boca de Barro, a Xupé e a Feiticeira ou Vamo-nos-embora.

 

A descrição da Tiúba-Grande e da Pequena mereceu de Leonardo nada menos que dez no opúsculo de 65 páginas. Isso talvez se justifique porque “a Tiúba é reputada a melhor das nossas abelhas”. A descrição é detalhada, numa linguagem sugestiva, na qual há um ritmo, sem prejuízo do uso de palavras que conferem objetividade:

 

 

“O tamanho delas, quanto ao comprimento, andará por meia polegada ou mais, e terá duas linhas geométricas, até duas e meia, de grossura; sua cor é um tanto escura, quase como a de café torrado, e tem uma pequena risca branca na testa”.

 

Ao compor a Memória Acerca das Abelhas da Província do Piauí no Império do Brasil, Leonardo não aposentou sua condição de poeta. O leitor logo sentirá que há um “texto paralelo”, e esse é poético.

 

Ao descrever a morada das Tiúbas, Leonardo registra detalhes de que só um observador arguto é capaz: “Esta espécie de abelha faz sua porta de barro, com relevos em torno, de forma pontiaguda, e desiguais”. Quando fala sobre os atos rotineiros daquela espécie, diz: “As Tiúbas saem a trabalhar logo de manhã cedo se o dia está desnevoado”.

 

Boa parte da qualidade da prosa leonardina resulta da recusa em usar o tom professoral, tão ao gosto dos que escrevem com pretensão de transmitir conhecimentos. Além dessa atitude fundamental, Leonardo não retira o protagonismo das abelhas, reconhece-lhes a inteligência e dá a elas a personificação: “Nos enxames pobres viram-se muitas fecharem à noite com cera a sua porta, com receio dos inimigos noturnos (que são quase sempre as formigas de certas espécies, que gostam de mel, e principalmente da chamada Sarsará), e abrirem de manhã”.

 

Ainda falando sobre as Tiúbas, Leonardo faz uma afirmação, cujo significado pode ser ampliado metaforicamente: “As abelhas do Piauí não têm ferrão, mas nem por isso estão de todo destituídas de armas”.

 

Nas 24 espécies e variedade descritas, há semelhanças e diferenças entre elas, e são tantos os significantes apanhados por Leonardo que não se pode deixar de comparar a complexa vida das abelhas com a não menos complexa e muitas vezes incompreensível vida humana. Há, por exemplo, a abelha Preguiçosa, que, ao contrário das demais, não gosta de trabalhar e “consente que lhe roubem impunemente o seu mel, o qual nunca é muito”. O leitor pode, às vezes, ser tentado a achar que Leonardo discorre não sobre abelhas, mas sobre seres humanos: as Preguiçosas “entram sem cerimônia nas casas alheias, onde, se não são repelidas, se estabelecem, sustentando-se às custas dos habitantes, que afinal lhe cedem a casa, e elas ficam de posse, enquanto há o que desfrutar, e depois a desamparam”.

 

Mesmo quando fala de espécies sobre as quais julga de pouca utilidade sua criação em cortiços, Leonardo não as despreza e as observa, quase sempre relacionando suas existências com as de outras criaturas, como as formigas e as lagartixas. Ao descrever, por exemplo, a Uruçuí, ou Pé-de-Pau, o autor explica por que recebe esse nome: é que essas abelhas moram nos troncos, ao nível da terra, e fazem o mel no oco das raízes.

 

Por serem facilmente encontradas, tornaram-se raras, pela exploração predatória. Além de tirarem o mel, os humanos deixam os filhos espalhados no chão, expostos ao sol e à chuva, presas fáceis de dois inimigos: as lagartixas e o Papa-Mel. A descrição deste último é um primor: “é um animal do tamanho de um gato de casa, porém mais baixo e esguio, dos quais há muitos nas matas da província do Piauí, e são estragadores das abelhas, porque não só trepam muito, como têm fortes dentes, com os quais roem os madeiros menos rijos; e entram nas casas das abelhas, comem-lhes o mel e os filhos, fazendo grande estrago”.

 

Leonardo deplorava o “bárbaro e estragador” comportamento geral contra todas as abelhas. Não inocenta camponeses pobres, índios e escravos, tampouco os ricos, a quem atribuía responsabilidade, pois poderiam ter suas colmeias, “de onde sairiam muitos enxames, que supririam esses estragos”. Por isso, já naquela época, fez uma advertência de torturante atualidade: “a abundância primitiva das abelhas vai diminuindo aceleradamente, e tempo virá em que serão raríssimas”.

 

Consciente do que estava fazendo e acontecendo, Leonardo conclui a Memória com uma constatação, um lamento e uma denúncia, em um tempo em que sequer havia sido criada a palavra Ecologia. A “riqueza pública” era, como continua sendo, objeto da depredação e da cobiça:

 

“É pena que, tendo os brasileiros tantas riquezas naturais, não tirem delas o proveito que poderiam tirar, e só tratem material e indiscretamente de gozar o presente, sem olhar para o futuro; e por isso em todos os ramos de riquezas públicas naturais não se vê senão uma estúpida e cruel devastação”.

 

Memória Acerca das Abelhas da Província do Piauí no Império do Brasil só foi escrita porque seu autor também as criava, e isso favoreceu o ofício da observação direta. Foi poderosamente atraído por elas, por sua ciência e seu fascínio. Aliás, Feiticeira é o nome de uma variedade, ou Vamo-nos-Embora. Com elas, vamo-nos também embora, nutridos pela prosa leonardina, não sem antes comungar com H. Dobal a poderosa força das sementes que Leonardo semeou sobre a Terra:

 

Ai campos de criar

campos do Piauí

as foças de Leonardo

outras forças criem aqui.

Total
0
Shares
Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Postagens Relacionadas