Acerolas pisadas, pés limpos, de Ayrton de Souza

Ilustração: Ray Araújo

Edição: Auryo Jotha
Revisão: Joana Tainá
Ilustração: Ray Araújo

Naturalmente divina, assim era a paisagem emoldurada pela minha janela. Do quarto, conseguia ver todo o verde emaranhado de plantas altas que ia até o fundo do quintal. Não se enxergava o fim sem adentrá-lo. Pedrinhas no chão preenchiam os trajetos que levavam ora pra lavanderia no canto esquerdo, ora pra hortinha no canto direito, e ao dar de cara com isso quando acordava sempre via, num canto ou outro, minha vozinha fazendo alguma coisa. Era uma paisagem muito pura, deslocada de todo o resto do mundo.

Era tempo de acerolas e elas se misturavam com as pedrinhas do chão. Com meus passos coloridos por elas, fui até o varal, tirei as minhas roupas que deixei por secar a noite toda e segui o ritual matinal de me arrumar para passar o dia na universidade.

Morava ali tempo o suficiente para ser confidente das paredes. Sentado sobre o sofá enquanto tomava o café da manhã, olhava para elas e as fotografias antigas que nelas eram penduradas. Por falta de um porta-retrato, as fotos da família eram colocadas por dentro de relógios velhos, utilizados de carcaça, avisando meio que sem querer alguma coisa sobre quem estava ali, sobre quem não estava mais e sobre onde estaríamos em algum momento.

Mas me levantei de uma vez ao dar de cara com minha vó levando sobre o ombro as suas roupas secas, retiradas do varal. Entrei na sua frente, a meio caminho de seu quarto, peguei mais da metade das roupas e pendurei nos meus ombros. Na sua cama, joguei tudo por cima da sua colcha puída pelo tempo, mas que ela tinha muito carinho. E apesar do descuido, tanto com sua saúde quanto com a sua roupa de cama, bem ao lado, sobre uma mesinha bem organizada e sem rastro de poeira, havia uma estatueta de uma mulher negra com os olhos vendados por pérolas e um longo vestido entrelaçado por tons de branco e azul claro, não só como se flutuasse sobre o mar, mas como se fosse ele próprio.

Eu precisaria de muito mais tempo ali para organizar as roupas e colocá-las nas gavetas tendo certeza de que ela não se machucaria, mas, precisando estar cedo na universidade, o máximo que eu podia fazer era pedir, com muitos por-favores, que ela não tivesse pressa e lembrasse que não era mais moça.

Com a minha mochila nas costas, só o que me restava era pegar a chave da moto e sair para mais um dia como todos os outros. E, dentro dessa rotina, a última coisa que eu fazia na casa era olhar para as gravações das câmeras de segurança. Eu mesmo me encarreguei de instalar faz alguns anos e, acredite, ali eu já vi de tudo: bêbados mijando no portão, alguém cagando e passando a merda no muro por algum motivo, animais rasgando o saco de lixo em busca de comida, então nada me surpreenderia. Até aquela manhã.

Nem sentar na cadeira da mesa com as telas eu tinha sentado, não queria ter ficado ali por muito tempo, mas quando peguei a gravação feita durante a madrugada, eu sentei no estofado por que algo de errado desmontou os músculos das minhas pernas.

Uma luz fortíssima preencheu a gravação de um branco cinzento e, de dentro dela, uma silhueta fraca se movia com uma estranha calmaria, movimentou os braços com uma suavidade angelical, e parecia carregar consigo algo como um balde, ou muito próximo disso, a silhueta abaixava os braços para pegar algo de dentro e mexia com a mão. Isso durou mais ou menos dois minutos, até que o feixe de luz subiu lentamente rumo ao céu, na velocidade de um bater de asas.

Aquilo realmente me assustou, mas não tanto quanto chegar atrasado em uma aula em que o meu número de faltas estava prestes a me guilhotinar. Me levantei e fui até o terraço, onde ficava minha moto e gritei me despedindo da vozinha. Ao sair pelo portão e pôr o capacete, percebi que a vizinha da frente, uma mulher com seu filho nos braços, olhava na minha direção. Só a conhecia como a mulher que mora na frente, mas ela queria me dizer alguma coisa do jeito que uma mãe diz pra um filho, quando alguma coisa muito ruim está chegando e tudo o que ela pode dizer é: “Se esconda”.

Subi na moto, liguei o motor e ela continuava olhando na minha direção. Ajeitei os retrovisores e vi que, em algumas casas atrás, algumas outras pessoas também olhavam para mim. O que havia de errado? Tímido, fugi de seus olhares, virei o rosto rapidamente e vi, uma coisa estranhamente simples e que por isso não fazia sentido nenhum.

Tinha um X pintado na cor branca, muito grande, no muro chapiscado da casa da minha vó.

~~~

As pessoas que passavam por perto e me conheciam estranhavam: “O que aconteceu com o aluno todo focado que ficava longe do celular durante as aulas?”, e eu não saberia responder, porque a única coisa que não saía da minha cabeça era saber se a minha avó estava bem e quem havia feito aquela arruaça no muro.

Entrei em contato com minha mãe e outros parentes, não apenas escrevendo sobre o ocorrido, mas também enviando algumas fotos de ângulos diferentes do enorme X pintado com tinta branca. Porém, só o que retornou a mim foram mensagens vagas ou humoradas, o que me fez lembrar o porquê de eu morar sozinho com minha avó, sem visitas e distante: ninguém se importava com ela, exceto eu.

O resto da aula da manhã foi gasto entre mensagens familiares que não levavam a lugar algum. No almoço, conversei com alguns colegas, mas, apesar do evidente susto no olhar deles ao ver as imagens, nada me disseram de importante e, durante a aula da tarde, me dediquei a ligar para a vozinha. O que ela dizia me dava a impressão de que estava tudo bem: galinhas pondo ovos grandes, uma bacia de acerolas nova no fundo da geladeira, milho jogado no quintal para alimentar passarinhos que vez ou outra passavam a tarde com ela, antes de irem embora por muito tempo. Deixei a universidade mais aliviado e pensando que, no fim das contas, aquilo era apenas tinta. Uma outra mão de tinta por cima resolveria tudo. No fim de semana, eu cuidaria disso.

Voltando para casa de moto, o branco das nuvens era tingido pelo vermelho do pôr do sol, sangrando por um tempo aquilo que logo seria noite.

Ao chegar na esquina de casa, a estranha imagem do X branco no muro chapiscado foi completada pela aparição de quatro ou cinco homens altos, de terno e levando um livro de capa de couro debaixo do braço. A porta estava aberta e, ao parar próximo deles, percebi que haviam mais homens assim do lado de dentro. Buzinei, tirando-os da minha frente e desci da moto para afastar a porta. Buscando tirar satisfação, perguntei a um deles, o mais alto e que usava um terço junto da mão, isso parecia o distinguir dos outros.

— Estamos aqui por um chamado de Deus! Veja só, os anjos marcaram a sua casa. É aqui que ele vai voltar! É hoje que ele vai voltar.

O homem estava numa animação de esbugalhar os olhos.

— Quem vai voltar? Que história é essa, maluco?

— Hoje é o retorno Dele! E vai ser aqui, na sua casa!

— Dele quem?

De dentro da casa, do fundo do quintal, uma voz cansada e estridente gritou: “Encontramos! Encontramos!” E, antes que o homem com quem eu conversava se virasse para dentro e fosse até o fim do terreno, ele pôs as mãos no coração e olhou para o céu, com muita emoção, e disse.

— Dele.

~~~

Ao passar pelo portão, vi que a busca dos homens havia causado um reboliço. O lugar não era mais o mesmo, algo de puro havia sido profanado. Um grupo deles estava de cócoras ou sentados, tirando a grama e o mato baixo do chão, próximos de buracos que pareciam ter sido cavados com as mãos, que agora estavam sujas de areia e sangue. Eles descansavam de olhos fechados sobre a sombra das árvores grandes que eles não podiam retirar.

Outros grupos de estranhos estavam espalhados em diferentes cantos, todos eles ou cavando com as mãos ou desmatando partes do jardim que ocupava os cantos do terreno, sobre a sombra de pés de acerolas cujas as frutas pisadas me diziam algo que eu demorei um pouco pra entender. Eu olhava e olhava pro chão, procurando uma resposta nas acerolas esmagadas, mas só pude entender mesmo ao seguir os passos do homem que ia até o quintal, muito emocionado.

O que as acerolas pisadas me diziam é que esse homem estava limpo. E ele não deveria estar assim. A sola de seus sapatos se mantinha a mesma, seja pisando na areia misturada com o sangue de seus amigos, seja pisando nas acerolas que tingiam o chão com algo que parecia sangue, nada disso o sujava como se, na verdade, ele não pisasse mesmo sobre o chão. E olhando para o seu jeito de andar, para como sua emoção transbordava em palavras que dizia repetidas vezes, e para a maneira como parecia guiar toda aquela expedição ao terreno da minha avó, eu tinha certeza de que ele não era normal. Seus pés estavam limpos, e não deveriam.

Os buracos cavados a mão na parte da frente não se comparavam em nada ao único buraco cavado no fundo do quintal. Não era profundo, mas era imenso. De um canto a outro, entre homens de camisa social que transbordavam emoção nos olhares, estava minha vozinha, que ao me ver tremeu de alívio e saiu de perto deles, abraçando-me como se fugisse de um pesadelo.

— Que sufoco, meu netinho. Esses homens apareceram na minha porta e foram entrando e entrando, mexendo nas plantas, cavando o chão.

— Entraram dentro da casa também?

— Eles disseram que ainda não era preciso, mas se fosse, se ele quisesse, entrariam.

— Ele quem?

Minha vozinha mantinha suas mãos sobre meus ombros, fazendo eu me tremer junto dela. E sem conseguir elaborar uma resposta mais explicativa, a única coisa que ela pôde fazer foi apontar para o fundo do buraco e dizer baixinho, como quem diz um segredo.

— Ele.

No fundo do buraco, enxerguei uma pedra branca. Percebi que a tal pedra parecia muito uma criança. Me aproximei do círculo de homens ao redor do buraco, que agora parecia mais um berço, onde algo aparentava mesmo ter nascido ali. A coisa de pedra lembrava uma criança, como se esperasse ser esculpida.

~~~

Eu me perguntava, se eles já tinham encontrado o que queriam, porque continuavam revirando o terreno de casa. Chamei a polícia no dia seguinte, e eu já tinha achado que demorei demais pra fazer isso. Esperei por eles na porta da casa, com um olho na rua e outro nos malucos que agora mediam os muros do terreno e conversavam sobre onde ficariam os bancos, onde ficaria o sacrário, e tudo aquilo pareceu coisa de doido.

Do fim da rua, notei que um veículo robusto e barulhento se aproximava. Ao estacionar na frente da minha casa, o vidro escurecido da porta desceu e pude ver seu interior: dois homens fardados com coletes e armas olhavam para mim com seriedade. Conversamos através de perguntas e respostas burocráticas, rompidas quando pediram que eu descrevesse o que estava me causando tanto incômodo para acionar a polícia. Expliquei, desde o X até a invasão.

Os dois policiais se entreolharam, ainda sérios, mas dessa vez como se enrolassem a língua dentro da boca para não dizer algo. Afinal, não disseram nada. Só apontaram para a casa e juntos entramos. A presença dos homens sujos cavando todo o chão da minha casa pareceu, apenas levemente, incomodar. Por fim, levei-os até aquele que parecia coordenar a expedição.

O sujeito era muito simpático, e a sua simpatia era como poeira escondida debaixo do tapete. Talvez eu estivesse me tornando paranoico com aquela sequência de acontecimentos, mas ninguém me culparia por isso. Um por um, todos eles foram saindo da minha casa, guiados pelos dois policiais. A quantidade não caberia na viatura, por isso naquela tarde, foram vistos quase cinquenta homens de camisa e calça, sujos de areia e com as mãos feridas de sangue, cabisbaixos, lamentando o fracasso pelas ruas.

“Acabou, finalmente”, era o que eu tinha pensado, procurando um lugar para deixar a moto por entre tantos buracos no chão. Ao entrar em casa para, finalmente, descansar, tive meu sossego rompido pelos murmúrios de um pulmão velho e cansado, em lágrimas cansadas. Minha vó estava de joelhos de frente para a mesinha, agora vazia.

— Levaram, levaram! Levaram ela embora.

Sobre o espaço em que a estátua deveria estar, a parede cor de creme destacava o vazio.

— Foi Ele! Foi Ele!

Abracei-a para trazer um pouco de paz ao seu coração, ainda que durasse pouco tempo.

~~~

Com mais ou menos uma semana, e a surpreendente ajuda de alguns parentes que eu não via há anos, consegui fechar todos os buracos feitos durante a invasão. A visita foi inesperada, mas as suas perguntas vinham em lufadas de hálito de urubu: “Como anda a saúde da vozinha?”, “Anda cuidando bem do terreno, caso aconteça alguma coisa ruim no futuro?”. Sorri para tudo isso, contanto que tivesse alguém pra terminar o serviço mais rápido.

Ao terminar os trabalhos braçais, foram embora com despedidas rasas e olhares vazios, procurando a saída o mais rápido possível. Eu não esperaria nada de diferente. Mas agora era apenas eu e ela de novo, conseguiria manter a rotina de estudos, focar no estágio e voltar para casa e cuidar de vozinha, que ainda andava triste pelo sumiço de sua estátua. Tudo isso, entretanto, se tornou apenas um sonho, pois durante a noite a casa perdia a paz.

Haviam noites em que eu precisava dormir cedo, sem as interferências do celular ou das chamadas online com os amigos, pois era necessário que eu estivesse com ânimo e energia para cuidar das diversas atividades acadêmicas que colocavam sobre meus ombros, e que eu aceitava. Sempre achei que eu transpirasse algum tipo de liderança, que as pessoas ao meu redor enxergassem em mim alguém que elas poderiam confiar, e por isso acolhi de braços abertos as atividades pertinentes ao curso que fazia. Porém, o que sempre me frustrou, era não ter alguém para confiar. Para quem eu diria “o que acontecerá agora?” Quem poderia me acolher, ainda que apenas por um instante, e retirar dos meus ombros o peso que por vezes não me deixa respirar. Eu só queria ter conseguido dormir, mas Ele não deixava.

A minha insônia era perpetuada pelos barulhos incomuns ao redor da casa. Não era como se, em algum ponto específico, algo estivesse acontecendo, e sim como se algum bicho estivesse correndo ao redor do terreno, repetidas vezes, sem parar, a noite toda. Não chegaria ao ponto de tomar os remédios para dormir da minha avó, pois como estudante da área da saúde eu sabia dos riscos, o que pude fazer foi colocar fones de ouvido e usar a máscara de dormir que minha avó nunca usou, e que lhe dei de aniversário anos antes.

Em vão, tudo em vão. Na escuridão da venda de algodão e no silêncio de plástico, os passos da criatura reverberavam nas batidas do meu peito, e quanto mais eu fugia, mais parecia que ele corria dentro de mim. Eu era a casa agora, ou talvez, sempre tivesse sido. Estando tão próximo assim, é como se corresse por partes de mim que eu preferia sequer engatinhar. As noites se tornaram um momento de fechar as pálpebras e virar os olhos para trás, reconhecendo o fundo da minha cabeça e todas as suas curvas sem saída em que a criatura corria atravessando suas paredes. Era preciso por um fim nessa invasão de privacidade, que já durava tanto tempo.

Certa noite de insônia, decidi que aquilo acabaria ali. Na hora da noite em que nenhuma nuvem sobrepõe a Lua, saí da casa com um facão de cozinha na mão e uma lanterna na outra. A luz lunar engana, eu tinha que ter a minha.

Meus esforços próprios de iluminar, entretanto, eram apenas brevemente mais lúcidos do que a luz natural, pois de qualquer maneira, o chão do terreno parecia com uma pele ferida, com chagas onde antes eram os lugares em que os malucos cavaram e deixaram linhas de sangue. Os buracos fechados não apagavam a ferida, a cicatriz da terra permanecia ao seu redor, estranhamente avermelhada por entre trilhas hipnotizantes de acerolas pisadas, como se houvesse chovido sangue.

Minha mão tremia timidamente, pois eu escondia o nervosismo. O mistério que antes me envolvia no emaranhado verde, quase sagrado, havia se tornado um aviso assustador de que alguma coisa perigosa se escondia onde meus olhos não chegavam. Até que enfim, vi ainda que de relance, a coisa que tirava meu sono. Ele correu pela outra extremidade da casa, como fazia todas as noites, dando voltas ao redor, mas dessa vez eu corri atrás do desgraçado. A coisa era pequena, e não seria difícil alcançá-la, mas, ainda sim, estava sempre a uma distância segura para ele. Senão, a faca já tinha comido o couro. E foi quando eu percebi, que ele não tinha couro.

Ele não suava, sua pele não tremulava ao se deslocar, e seus movimentos eram rígidos como o de uma estátua que recentemente ganhara a flexibilidade de correr. E, no fim das contas era isso mesmo: um pedaço de pedra que parecia ter pernas correndo e fazendo barulho pelo terreno de casa.

Ao dar a terceira volta, me achei bem estúpido. E talvez a criaturinha também tenha se achado meio boba e por isso mudou o trajeto, saindo das voltas circulares que dava ao redor da casa e indo em direção às arvores no fundo do quintal, que a essa hora da noite pareciam um portão verde que segredava o desconhecido. Eu não poderia deixar aquilo ir embora, não mais. Era hora de pôr um ponto final nessas invasões irracionais que reviravam minha vida de cima para baixo, quando mudei de rota e fui na direção dos fundos do quintal.

A cada passo, ouvia o som frágil de acerolas se quebrando. Ou seriam ossos? Porque haveriam de ser? Olhei para baixo, uma única vez, pois nunca mais voltaria a fazer isso, e as pedrinhas de areia vermelha brilhando como sangue coronário pareciam olhar de volta, como um abismo.

Naquela noite, o emaranhado de árvores que passei tanto tempo vendo da minha janela ao acordar, aparentava ter se esticado para os lados e em profundidade, e onde haveria de existir um muro, havia uma continuidade profunda de mais árvores e plantas. Fazia frio.

Um vento torto e espinhoso dava volta nos troncos e nos galhos, sem ter noção exata para onde ir, e junto dele, um som uníssono pegava carona até os meus ouvidos. Parecia o som obtuso de uma boca fechada, que apenas reverberava um som de meditação. A cada passo dado, ele aumentava, e aumentava, na mesma proporção em que eu pensava ser impossível existir tanto espaço assim no quintal. Eu já não estava mais lá, não era possível que eu estivesse. Até que de repente, um conjunto de pontos vermelhos chamou minha atenção. Segui seu brilho, e dele vinha o som junto do vento. E quando as luzes vermelhas se tornaram olhos de fogo na escuridão daquela floresta, dei de cara com as pessoas que, na verdade, nunca haviam ido embora.

Os homens de camisa social, os policiais, meus parentes interesseiros, todos eles estavam dispostos como em uma missa. No espaço em que seria o púlpito, o simpático líder dos invasores estava sentado numa cadeira de madeira, com a criaturinha no colo, pintando algo no seu rosto com um pincel. No chão, atrás dele, a estátua de minha avó, agora sem suas cores, sem sua vida. As pérolas que cobriam seus olhos foram roubadas, a cor de sua pele apagada e não haviam mais expressões no rosto e sequer as curvas que diferenciavam a estatua de uma pedra comum.

— Não tenha medo, irmão. Ele está aqui para trazer a Boa Nova. A única coisa que você precisa fazer é sentar conosco e ouvir o que ele tem a dizer. Como todos aqui fizeram, não é mesmo? Mostrem a ele, o que colocar os ensinamentos Dele no nosso coração pode fazer, mostrem!

Juntos e lentamente, eles se viraram para mim, dando poucos passos em redor do próprio eixo e eu até diria que eles estavam olhando para mim, se tivessem olhos, ou que falavam comigo, se tivessem boca, ou que ouviriam meus gritos antes de correr, se tivessem ouvidos, mas acho que eles sequer me entenderiam, porque não pareciam mais gente. Sem nada no rosto, sem nada no corpo, eles eram planos e inexpressivos como uma pedra. A roupa que vestiam parecia deslizar rumo ao chão como um musgo sendo levado pela água da chuva. Seus braços e pernas eram rochas finas e suas vozes saiam de alguma boca que não era a deles.

Era a criaturinha. Tinha que ser a criaturinha. Ela olhou pra mim, e não era mais aquela coisa de pedra encontrada dentro de um buraco. Ela tinha tudo aquilo que nos outros faltava. Era viva. E ela olhava para mim como se quisesse me matar. Olhos de policiais, um pedaço da boca de cada parente, e o resto do rosto mutilado em desenhos tortos que lembrava um pouco dos invasores. A criatura era um túmulo de pedra fechado com almas, e parecia transbordar ao mexer cada parte de seu corpo como se fosse gente demais naquele corpo minúsculo.

Aquilo era o meu limite, e por isso corri de volta para casa, deixando as chamas dos rituais e os sons de meditação para trás, nunca mais voltando a adentrar os segredos de um emaranhado de árvores na madrugada.

~~~

Na manhã seguinte, acordei indo direto até o espelho do banheiro, tateando meu rosto para confirmar se faltava algo ou não. Demorei muito nessa investigação, pois queria ter certeza, puxei as orelhas até doerem, dei petelecos no nariz e mordi os lábios até quase sangrar. Foi quando minha avó bateu na porta. Talvez ela precisasse usar o banheiro, já que a idade afrouxou sua bexiga e fazia xixi com uma frequência quase que irritante. Abri a porta e ela me olhou com um misto de surpresa e admiração.

— Vem ver o santo que eu ganhei!

— Santo? — Perguntei, assustado. — Que santo? A senhora não era da Umbanda?

Ela puxou meu braço antes de responder. Na verdade, parando pra pensar, ela nunca me respondeu de volta. Só me levou até seu quarto onde me reencontrei, uma última vez, com aquela criaturinha maldita que parecia zombar de mim. Lá estava ela: sobre a mesinha ao lado da cama, tentando ficar imóvel, mas não conseguindo, como se tudo fosse uma piada.

Em seus pés, que tremulavam enquanto ele se equilibrava apenas sobre um deles, no outro se via a marca vermelha de acerolas que pisou enquanto corria ao redor da casa.

Peguei minha avó pelos ombros e disse:

— Você precisa se livrar disso.

Ela estava de costas para mim, por isso a puxei, virando seu corpo. Mas ela estava muito pesada. Suas articulações estavam duras, seu braço rígido e de repente nem parecia respirar. Enquanto eu olhava para minha vó sem entender o que acontecia, a criaturinha olhava para mim, meio satisfeita, ocupando um espaço no quarto que antes era sagrado.

Ilustração: Ray Araújo

 

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