Somos todas rotas alteradas

Hoje fui ao salão exercitar a minha vaidade feminina. Como é de praxe, a conversa rolava solta entre as manicures, e eu ouvia. O debate era sobre o comentário do marido de uma delas: “Muita mulher morre porque não acredita”. Fiquei interessada e apurei os ouvidos.

— É verdade. A minha menina tinha um namorado que ameaçava ela. Eu dizia para ela ter cuidado e ela só respondia que ele não tinha coragem.

— Isso é um perigo, não se pode duvidar. Na hora da briga ele sempre pode perder a cabeça.

— E se ameaçou, é porque pensa nisso.

Enquanto elas continuavam a conversa eu lembrava que há 7 dias (em 29 de janeiro de 2024) o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios – TJDFT – divulgou um questionário com 17 perguntas que apura se a pessoa vive em um relacionamento amoroso tóxico.

Todas as perguntas do quiz também constam no questionário da polícia que a vítima responde quando faz um B.O. de violência doméstica, no Estado de São Paulo.

Pensar em violência contra as mulheres é sempre delicado para mim. Na realidade acredito que para a maioria de nós, mas não me sinto à vontade falando por outros além de mim mesma.

Infelizmente já se tornou uma situação corriqueira no Brasil. Não nos causa mais surpresa nem consternação saber que quase metade das mulheres assassinadas no Piauí são vítimas de feminicídio[1]. Segundo o anuário da violência, do total de homicídios contra mulheres registrados em 2021, 50,7% foram feminicídios, ou seja, foram motivados por violência doméstica ou pela condição de mulher da vítima. Em 2022 houve uma sensível queda para 34,3%. Apesar de ser um percentual menor, ainda é um número alto, considerando que a média brasileira é de 34%.  Segundo o mesmo levantamento, o Piauí ocupou o 17º lugar do país nessa proporção. Em 2019, o estado chegou ao maior percentual do país neste ranking, com o feminicídio correspondendo a 63% do total de mortes de mulheres.

Sei que tantos números podem ser chatos e até mesmo confusos, mas são importantes para o exercício da reflexão que proponho hoje. Não somos dados, somos pessoas, não somos pontinhos na tabela, somos seres humanos que precisam de dignidade e segurança para viver. Toda essa ponderação me ocorreu enquanto as manicures pintavam as minhas unhas. Cantei em pensamento A rosa de Hiroshima, poema de Vinícius de Moraes transformado em canção pelo grupo Secos e Molhados, em 1973.

O poema foi escrito em 1946, sobre as consequências da bomba lançada pelos EUA, em 1945, na cidade de Hiroshima. Os danos causados pela bomba não alcançaram somente aos que ela atingiu diretamente, há também um efeito que ficou conhecido como bomba hereditária, que consiste na deformação ou o surgimento de câncer em crianças que nasceram de pais que sofreram o efeito da radiação.

Falei das minhas unhas, das taxas de feminicídio no Piauí e do poema do Vinicius. A costura entre esses temas é que eu estava ali pela minha higiene e vaidade, todavia, pelo menos uma das mulheres que estavam naquele estabelecimento hoje à tarde, o fazia por imposição social. O autocuidado é tão importante quanto necessário, mas não nos deve tornar escravas.

Tal qual a bomba hereditária, o machismo imbricado nas estruturas sociais da comunidade se propaga e prolifera nas gerações próximas e seguintes. Fazem das mulheres vítimas de sua própria existência, alterando suas rotas naturais de forma irremediável.

Não tenho conta das vezes em que presenciei ou mencionei fatos ou situações de machismo – velado ou escancarado – e as pessoas simplesmente deram de ombros, fizeram cara de paisagem ou fingiram não ver/ouvir.

A triste verdade que constatei sobre isso é que ninguém se importa genuinamente. Existem leis, existem números para os quais ligar e até mesmo amparo psicológico proporcionado pelo governo, mas, até chegar a essas instâncias, muita coisa já aconteceu e muita dor já foi acumulada.

A quem interessa não falar sobre isso? É bom que se esclareça que repostar matérias que abordam o assunto – embora seja válido – não é suficiente. Apoiar campanhas com hastags escondido atrás de contas nas redes sociais não é debate, fazer cara de horror ao saber de violências de gênero (e aqui uso o meu lugar de fala para abordar mulheres) não é ação, na realidade não passa de uma farsa. As pessoas fingem que se importam e a fila anda, enquanto as mulheres, por onde estiverem, continuam vítimas de uma bomba hereditária milenar, plantada pelo ódio ao ventre.

 

Pensem nas mulheres

Rotas alteradas

[A rosa de Hiroshima – Vinícius de Moraes]

 

[1] A Lei 13.104, de 9 de março de 2015, qualificou o crime de feminicídio quando ele é cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

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2 comentários
  1. O primeiro preconceito da civilização, segundo ouvi de pesquisadores sérios, foi a misoginia. Há situações tão absurdas entranhadas em nossa cultura que não nos damos conta de o quanto ainda temos de evoluir em relação a condições iguais. Muito oportuna a crônica Denise e, mais uma vez, a escrita clara e concisa de sempre.

  2. Excelente, Denise! Cirúrgica nas palavras. Há muito o falar, debater, aprender e ensinar sobre esse tema. Estamos ainda muito aquém enquanto a sociedade civilizada que pensamos ser.

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