Entre dentes, de Ayrton de Souza

Ilustração: Igor Ganga

Edição: Auryo Jotha
Revisão: Joana Tainá
IlustraçãoIgor Ganga

Esquecer de escovar os dentes já não me incomodava mais. O barulho que mastigava a minha paciência, esse sim, me atormentava. Um som de passos, e eu os ouvia vindo de cima, mesmo dentro do carro. Não eram os das crianças que corriam, nem das que caminhavam devagar em filas indianas, coordenadas pelas professoras que eram minhas amigas de longa data. Poderia ser a minha cabeça doendo. Poderia ter sido a noite que virei corrigindo provas, ou poderia ter sido a noite que virei sem conseguir dormir por pensar que ainda não tinha trabalhado o suficiente. Poderia ser a noite caminhando dentro da minha cabeça, aprisionada nos meus olhos abertos. Todas as noites, presa comigo dentro de casa.

Éramos eu, minha maleta e o meu cansaço. Passei por algumas crianças que conhecia e por umas que estariam, em breve, nas minhas turmas. Recebi acenos de mãozinhas com pulseiras coloridas e apertos de mão de grupos de meninos que, na sala, não ligavam muito para o que eu dizia. Mas, enfim, eu gostava de todos eles.

Lá não era o pior lugar do mundo, apesar de a dor de cabeça constante sussurrar no meu ouvido o contrário. O prédio de concreto se camuflava entre o amontoado de árvores podadas e cuidadas, com um chão pavimentado de pedras brancas, um espaço aberto em que o Sol e o vento também brincavam de aprender. As crianças que por ali corriam e merendavam, deixavam uma parte de si pra lembrar no futuro. Depois de passar do guardinha na entrada, e de sentir o vento e o Sol no corpo, os barulhos não me abandonavam.

Não os ouvia apenas dentro do carro, na coordenação também, sons de passos. Abri a porta e no balcão peguei o meu diário. Abri o documento: mais passos. Um atrito rastejava nos meus ouvidos. Tinham dado um jeito de subir no telhado da escola, tinham entrado no meu diário e mastigado lentamente a minha paciência.

“Ei, ei. Está tudo bem?”

A mulher da coordenação falava comigo como se tentasse alcançar o fundo do poço, ecoando uma pergunta que tinha feito duas ou três vezes, antes de pegar no meu ombro e me balançar.

Eu só ouvia o atrito daqueles pés. Saí sem responder.

Quanto mais salas eu entrava, mais barulhos se uniam na procissão que era feita em cima da minha cabeça. E piorava. Se antes voavam no céu, quanto mais eu explicava o que era uma oração subordinada substantiva adverbial de tempo, mais próximos da Terra ficavam. Até que então, as lâmpadas do teto tremeram. Mas ninguém percebeu.

O que veio depois do tremor foi uma fissura. Uma bocarra de dentes afiados, quase como um zíper demoníaco, foi aberta no teto da sala sem que ninguém percebesse. Parecia tão errado, ali, por cima de crianças, numa sala em que o Sol atravessava as janelas livremente. Um pedaço languido de carne serpenteou para fora da boca e passeou por entre os alunos sem ser notado, atravessava a todos como se fosse uma nuvem vermelha.

Ela veio até mim. Mesmo sem olhos, me encarou. Parei por um instante, com uma frase escrita pela metade no quadro atrás de mim e uma resma de folhas de atividades na minha mão. A carne viva colou no meu rosto, estava babada e nojenta e fedorenta pelo hálito de quem quer que fosse o seu dono. Mas perdeu o interesse depois de alguns segundos e voltou para dentro da boca que se abriu no teto da sala. Apesar disso, a boca não foi embora. E então, eu entendi. A fonte dos atritos.

Dam. Dam. Dam. Dam. Dam. Eram mordidas.

~~~

Os tremores nas salas de aula só aumentaram com o passar das semanas. Alguns professores já haviam percebido, mas eles pareciam tão cansados quanto eu para ter algum tipo de energia e tomar uma atitude. Talvez, só eu a visse. E cada vez mais, a via em outros lugares também.

O som do atrito entre dentes era furioso e lento, martelavam no fundo da cabeça e também nos corredores da escola. Aquilo tinha raiva e fome. Talvez, por isso tenha surgido dias depois uma dessas bocas malditas no teto da cantina, onde o cheiro da comida era forte e delicioso, mas logo o hálito obsceno dela fez o macarrão com salsicha tomar uma forma asquerosa e desagradável. Foi quando eu decidi parar de comer lá. O problema era que eu dificilmente comia em casa também.

Os meses passaram com o tictac dos dentes que mastigavam a si mesmo como quem avisa que está pronto pra lanchar. Os corredores eram lotados de crianças, professores, alguns faxineiros e sobre o teto rastejavam línguas que pingavam sobre todos. Eu temia muito pelas crianças, mas, estranhamente, aqueles pedaços de carne assombrosos e nauseantes não pareciam se importar com elas. Agora, comigo…

Eu comia bolachas de água e sal com iorgute de morango quando, uma dessas línguas, desceu de uma fissura recém aberta na sala dos professores e levou a minha comida. Tirou da minha mão, deixando-a babada, e todos os outros ali na sala olhavam para mim com uma naturalidade duvidosa. Afinal, isso também acontecia com eles?

Foi horrível quando, na troca de professores, um horário em que os corredores ficam em silêncio e nas salas ouvem-se as aulas acontecerem, tive que atravessar a escola para chegar até uma sala onde a diretora me esperava. Mas, o cuspe e a baba que pingava do teto fazia dos corredores uma borda do mar. Ondas do oceano de saliva vindo de línguas que, já eram tantas, que se transformavam num forro de serpentes vermelhas ocupando toda a escola, vindo de bocas com dentes pontiagudos como rochas afiadas pelo vento em um abismo.

Nada disso se comparou a ter encontrado a diretora me olhando incrédula e me bombardeando com perguntas sobre aquilo que, pra começo de conversa, eu deveria estar em mãos desde o começo, mas que provavelmente me fugiu a memória.

“Onde estão as avaliações? Você esqueceu as provas no carro? Pode voltar pra pegar? Porque você não se esforça mais e dá tudo de si?”

~~~

Era tão natural assim que houvesse uma boca acima de nós, ficando cada vez mais gigante e faminta? Parecia que sim. E ela parecia me comer em silêncio, pois eu estava cada dia mais magro, cada dia mais cansado e cada noite mais sonolento. Guardava dentro de mim um imenso céu de noites não dormidas, estrelas que derretiam avermelhadas no espaço.

Mas enfim chegaram as últimas avaliações. Meninos e meninas de cabeça baixa e com lápis em mãos. Alguns deles estavam muito animados com a ideia de que, na próxima série, usariam caneta. Para eles, isso soava mais maduro, mais adulto. Eu não queria que eles se tornassem adultos tão rápido. Eu não queria que eles vissem o que eu vejo. Não queria que eles, daqui a alguns anos, se lembrassem de mim junto daquelas coisas, junto de uma boca que feito um aluno extra diz “presente” mascando o nada, só para irritar.

Lendo meus pensamentos, foi nessa hora que ela parou de mastigar. E foi como um relógio que parou de funcionar. O tempo estagnou. As crianças não mexiam um dedo. Estavam pensando ou paralisadas? A fissura que há meses preenchia o teto da sala era lentamente costurada de volta à realidade: agora haviam apenas as lâmpadas e os ventiladores. Alguém bateu na porta, era uma professora, conversávamos pouco, mas ela não parecia aliviada como eu, e sim desesperada. Ela me levou pelo braço até a área aberta da escola e deixou uma faxineira cuidando da sala. O que estava acontecendo?

O que acontecia era que a pequena fissura, aquela coisa insignificante no teto das salas e dos corredores não se comparava em nada com a boca que se abria no céu, em proporções meteóricas, com seu hálito colidindo contra todas as paredes e colunas e portas e bancos e pedrinhas. As árvores derretiam sob a escuridão da sua garganta, que vinha de algum lugar no mundo que nenhum ser vivo sobreviveria. De todas as portas de todas as salas, professores conhecidos, colegas, amigos, estavam tão apreensivos quanto inertes.

“Eu tenho uma prova pra aplicar, e você também, é bom voltarmos para a sala”, eu disse, soltando a mão da minha colega de trabalho.

O abismo que se preparava para nos engolir se aproximava mais e mais, e meus ossos finos e meu pouco peso não dariam conta de saciar aquilo que já me devorava há meses. Eu não poderia me importar menos com o fim.

“Podemos dizer às crianças que é apenas uma excursão”, eu falei, me virando e indo de volta para sala.

Quando a primeira mordida caiu do céu e nos destroçou, já não havia mais crianças na sala. A prova já havia acabado. Não havia porque elas ficarem ali, tão animadas, era melhor estar conversando do lado de fora da escola sobre as questões acertadas e as erradas, sobre como fazia tal soma, como encontrava na frase tal sujeito. E enquanto todas elas estavam lá, com seus pais, indo para casa, ninguém  reparou quando a escola toda sumiu de uma vez, de uma mordida só, deixando as marcas de dentes que rasparam o chão.

A bocarra, talvez, estivesse saciada.

Ilustração: Igor Ganga

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