Tudo o que acomete o olhar cria uma percepção, imagem e perspectiva no observador. Somos constantemente atropelados por símbolos, signos e sinais. Porém, quando este retrato para de ser um mero esboço e nos atinge tão profundamente ao ponto de modificarmos a percepção, até então tida como fixa, somos deslumbrados pelo indizível. O que fixa é o sentimento. A sensação. O despertar. A fotografia, como todas as artes, apresenta estes efeitos. A arte de Germana Queiroz transfigura a ideia do humano pelo inumano, a partir das diversas referências literárias, fílmicas e artísticas, o observador é levado a mergulhar nas narrativas de Queiroz e nos dizeres de suas atrizes.
Germana Queiroz declarou que é importante que consigamos criar e enxergar o extraordinário através do ordinário. A fotografia de Queiroz revela o humano para além do que se entende por ser. É através de bonecas, em maioria Blythe Dolls, que a artista constrói as suas narrativas – sob o olhar de vidro, o observador é inserido em atmosferas angustiantes, psicodélicas e excêntricas. A ótica trazida pelas bonecas é ressignificada a cada ambiente e cenário, atravessamos uma nova sensação, encantamento e desmoronamento.
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Destaque para Germana Queiroz, enquanto mulher autista, artista, bacharel em direito e associada da Associação de Amigos dos Autistas (AMA/Teresina) desde 2022. É através da composição de cenários psicodélicos que beiram ao irreal que a artista posiciona as bonecas e transforma um novo modo de se olhar o humano e as questões que o afligem, felicitam e desnorteiam.
‘‘Por ser uma forma de fotografia tida como diferente, as pessoas acham que é algo de outro mundo, mas não é. Eu, como autista, artista e como mulher, tô aqui e tudo isso é parte de mim e convive com a sociedade. E a sociedade tem que me aguentar!’’
Em 2025, teve suas fotografias selecionadas para participar do Festival do Prêmio de Portfólio FotoDoc, em São Paulo. Além disso, expôs seu livro ‘‘A Boneca Sabe’’ na Defensoria Pública do Piauí, no “Arte e Autismo: Caminhos para a Autoexpressão”, bem como no ‘‘Artes de Março’’, no Teresina Shopping (2025), em que a artista expressou a sensação de ter pela primeira vez a sua arte exposta ao público.
‘‘Parece que a sua arte se torna real, palpável. Não sei, parece que tem algo a mais, pois no Instagram e nos locais virtuais em que já publiquei, a sensação que transmite é a de uma barreira entre a internet, eu e o meu observador. Porém, ao visualizar a minha arte se materializar e a pessoa próxima a mim interagir e expor o que ela pensa. Meu Deus! É verdade, é real! Senti que minha arte se materializou. E foi uma experiência muito boa!’’
No dia 24/04/2025, no Sesc Cajuína, a entrevista foi realizada com Germana Queiroz. Ela nos contou sobre o seu interesse em fotografar, seu período de luto, sua arte e autismo, detalhando o processo e composição de sua arte com simpatia e alegria.
Geleia Total: O que te motivou a se tornar fotógrafa?
Germana Queiroz:Minha grande motivação para me tornar fotógrafa foi uma outra fotógrafa, chamada Ana Cândida. Também porque passei por um período de luto muito intenso no ano passado e ela me incentivou a fotografar como forma de lidar com o luto. Então, pra mim, foi muito importante essa nova forma de me expressar, porque me ajudou a lidar com essa situação. Mas também criou essa arte que estou tão envolvida no momento.
Geleia Total: De todas as artes, por que a fotografia?
Germana Queiroz: Eu acho que pela facilidade em criar histórias. Na minha infância, costumava escrever muito, criar histórias, cenários e ao longo dos anos isso foi se perdendo. Já na fase adulta, eu não escrevia mais, mas com a fotografia, com esse impulso da Ana Cândida, juntou algo que eu tinha perdido dentro de mim – e, ao encontrar as bonecas, consegui encontrar uma nova forma de me expressar para além da escrita. Eu acho a fotografia muito interessante! Porque não é simplesmente o CLICK, né? É toda uma construção de cenário, uma criação do que eu quero transmitir para outra pessoa, acredito que tudo isso tenha me impulsionado para essa arte.
Foto por: Ana Cândida
Geleia Total: Quais artistas do cenário da fotografia te inspiram? Tem alguma fotografia em especial que te toque?
Germana Queiroz: Eu não tenho nomes a dizer agora, mas para mim a própria Ana Cândida é uma grande influenciadora. Adoro as fotografias dela, foi o que me fez iniciar a fotografar. Mas eu sigo também vários fotógrafos que não são fotógrafos de fato, mas são colecionadores de bonecas que têm como hobby a fotografia, porque cada um deles utiliza uma boneca para se expressar. Então, é muito interessante como essa comunidade de colecionadores de boneca se expressa de uma forma muito diferente do que vemos na fotografia, normalmente, porque cada um dos colecionadores faz roupas, sapatos, criam os seus cenários. É tudo muito doméstico, casual, e eu gosto bastante desse tipo de cena.
Geleia Total: Germana, percebo que as suas fotografias são recheadas de tons psicodélicos, alguns beiram ao onírico, e sempre são protagonizadas, em maioria, por bonecas Blythe Dolls, poderia explicar o porquê?
Germana Queiroz: Por conta do autismo, eu sinto uma dificuldade muito grande em lidar com pessoas. Então, como já falei, desde criança eu costumava criar histórias, muitas eram fanfics (risos) de Naruto no Orkut. Mas também escrevi várias histórias originais, que ficaram mais guardadas para mim. Quando eu comecei a fotografar, tentei primeiro com pessoas, mas não gostei do resultado, porque eu preferia as bonecas por elas serem minhas atrizes. É como se eu fosse Deus e elas seriam… minhas pequenas minions? (Risos). As bonecas me dão uma liberdade para trabalhar, o que as pessoas, em geral, não pensam tanto nisso, porque ao pensarmos em bonecas remetemos à ideia de algo estático. Mas não, elas são versáteis, principalmente as Blythe Dolls, elas têm um cabeção, pois dentro delas há um mecanismo que faz mudar o olho. Eu consigo alterar os olhos e só essa mudança no olhar, como também da luz nelas… Tudo isso gera uma mudança na dramatização da foto. Então, gosto muito de trabalhar com essa liberdade que as bonecas me trazem, elas não reclamam e são ótimas atrizes. Cada boneca conta uma história, tem um nome e trajetória, elas são o meu conduite para que essa história chegue ao meu observador.
Geleia Total: Segundo Sebastião Salgado: “a fotografia é o espelho da sociedade”, para você enquanto fotógrafa, o que a fotografia representa para o artista e o mundo interior e externo?
Germana Queiroz: A fotografia representa o olhar de cada um. Eu observo muitas pessoas que fotografam e cada um escolhe um nicho, podem ser paisagens, flores, insetos. Então, o nicho revela muito do gosto pessoal de cada um, o que o outro quer transmitir, o que eu quero passar para o outro. Eu, por gostar de bonecas, de contar histórias, acabei contando histórias dessa forma, imagino que as outras pessoas também tenham esse olhar perante a fotografia.
Geleia Total: Além disso, quais são os desafios que você experienciou ao ser uma mulher artista e neurodivergente no mundo da arte?
Germana Queiroz:Eu diria que o autismo não é só uma característica única de mim. Mas ele é um fator que permeia as demais facetas do meu ser. Então, tudo o que eu faço tem um pouco de autismo, seja no trabalho, na arte. E sempre vai existir uma dificuldade em lidar com o outro. É muito difícil, às vezes, ouvir algumas perguntas como “por que você só fotografa bonecas?” “por que você não tenta fotografar outras coisas”, ou então, “você não se cansa de fotografar bonecas?”, já escutei muito isso. Daí eu penso, “e você não se cansa de fotografar paisagem?”.
Fotografia de Germana Queiroz.
Geleia Total: Você poderia explicar um pouco da composição de suas fotografias, o que move a escolha de determinado parâmetro, estilo e boneca?
Germana Queiroz: Eu sou uma leitora voraz, boa parte das minhas fotografias contêm elementos de livros, até mesmo o nome do meu perfil de Instagram, embora não seja baseado em um livro, mas é de um filme tcheco dos anos sessenta que assisti e gostei. Ele era gótico, e eu amo programas, livros e filmes com essa temática. Você pode até me perguntar, por que o meu Instagram é tão esquisito, mas, são os assuntos que leio, assisto e estudo. Então, às vezes, penso muito em uma cena que gosto, como a da Gretchen, não a cantora, mas a personagem do livro Fausto, de Goethe. E, particularmente, aprecio a cena em que a Gretchen está cantando na cadeia, esperando se o Fausto iria vê-la, criei uma cena a partir disso, usando uma das minhas bonecas que já sinto que ela é um pouco mais melancólica, coloquei um véu preto nela, perto de um livro e ajustei a totalidade para preto e branco, justamente para retratar a melancolia. Todas as minhas fotografias seguem um ritmo parecido com esse, penso em alguma micro história que quero retratar, escolho uma atriz e vou criando todo o cenário ao redor dela.
Geleia Total: Em relação às obras literárias que influenciaram a composição de suas fotografias, tem algumas que poderia citar?
Germana Queiroz: Eu gosto muito do Mistério de Udolpho, da Ann Radcliffe, é um dos góticos clássicos. Adoro literatura russa, tcheca, como o Mestre e a Margarida, do Micchel Gorbachev. Também gosto bastante de Mobydick, não é gótico, mas acho essa obra muito interessante porque tem uma edição dele dos anos 90, em que tem um prefácio da Rachel de Queiroz e nele a autora diz que leu Mobydick várias vezes, e todas as vezes, ela releu com a perspectiva de um personagem escolhido por ela… por exemplo, ela pega o personagem mais insignificante possível, mas, mesmo assim, ela lê o livro através dos olhos dele e isso me impactou bastante, porque eu comecei a ver o mundo dessa forma, me ajudou a criar empatia com as outras pessoas, pois sempre penso em como olhar para uma situação sob a perspectiva de outra pessoa, e isso também entra nas bonecas, como elas vão encenar essa determinada situação.
Geleia Total: Além de fotógrafa, você é formada em Direito e voluntária na AMA-pi (Associação de Amigos dos Autistas no Piauí). Qual a importância da AMA-pi em sua trajetória como mulher neurodivergente e artista?
Germana Queiroz: A AMA (Associação de Amigos e Autistas no Piauí) é extremamente importante para mim desde que eu me descobri como autista, em meados de 2021. Eu logo procurei a ajuda da AMA, não era para receber ajuda, mas oferecer a minha mão para outros autistas. Penso assim, tive e tenho uma família com boas condições e meu nível de suporte é baixo, mesmo assim, sofri muito na minha vida. Eu comecei a pensar: ‘‘como estão os outros autistas que não têm essa rede de suporte que eu tenho?’’. Então, procurei a AMA, porque já sabia que essa associação era uma referência à luta pelo autismo. Inicialmente, ajudei nas questões jurídicas, depois de um tempo acabou que a AMA mais me ajuda do que eu ajudo. Lá, encontrei pessoas que são extremamente agradáveis, compreensivas e que oferecem um suporte imenso para a gente. Acredito que a exposição do Artes de Março não teria acontecido sem o apoio dos profissionais da AMA. A exposição no local em que a AMA reside não teria acontecido se eles não acreditassem em nosso potencial. Então, a associação é basicamente uma segunda casa.
Foto por; Ana Cândida
Geleia Total: No dia 30 de abril, você lançou o seu livro, “A boneca Sabe”, poderia nos contar um pouco sobre ele e os procedimentos realizados para a elaboração do livro?
Germana Queiroz: É um livro de fotografias, publicado na Defensoria Pública, somente sobre bonecas Blythe, pois vou participar do Blythecon, que vai ser em novembro, em Sorocaba – é uma convenção só de bonecas, estou bem animada. Este livro começou a se materializar graças a Ana Cândida, nós fomos a uma leitura de portfólio e fui sem a menor pretensão, achando que não ia dar nada. Mas tive uma recepção tão boa, as pessoas me incentivaram a fazer um fotolivro pensei que podia e posso fazer um fotolivro. Ele foi feito por mim, eu fiz umcurso de corel draw, só por diversão. Não pretendo trabalhar em Design de Gráfico, só que o curso ajudou bastante, tanto que fiz meu livro todo em corel,e foi muito bom, divertido. O livro é composto de fotos com apenas algumas frases norteando a interpretação do leitor, mas nada que impeça o observador de tirar as suas próprias conclusões. Faço algumas referências a Shakespeare, a alguns outros autores, não consigo me desviar dessa parte, preciso fazer conexões no meu trabalho. E, mesmo se a pessoa pegar ou não a referência, ainda assim, é muito bom, são fotos que sinto orgulho de ter tirado, feito e de mostrar para as pessoas.
Geleia Total: Uma mensagem para os que te acompanham, o que podem esperar?
Germana Queiroz: Eu, primeiro, agradeço a todo mundo que me acompanha e que podem continuar acompanhando, pois sempre vou arranjar situações para essas bonecas protagonizarem. E quero agradecer muito. Também quero dizer para não terem medo de serem esquisitos, um pouco estranhos, porque sempre terá alguém que olhará para a sua arte e dirá: eu gostei! E isso é muito bom de poder ouvir.
Ver minha sobrinha Germana transformar sentimentos tão profundos em arte me emociona demais. Ela tem uma sensibilidade rara, que atravessa a lente e toca a alma de quem vê. Sou uma tia orgulhosa demais por tudo que ela tem construído com tanta verdade. Que o mundo veja, reconheça e se encante com esse talento único!
Linda e emocionante história!!!
Ver minha sobrinha Germana transformar sentimentos tão profundos em arte me emociona demais. Ela tem uma sensibilidade rara, que atravessa a lente e toca a alma de quem vê. Sou uma tia orgulhosa demais por tudo que ela tem construído com tanta verdade. Que o mundo veja, reconheça e se encante com esse talento único!