Crítica do livro “A hora do crime”, de Mércia Ferreira, por Marciléia Ribeiro

O terror do desconhecido

Esta crítica é quase um desabafo – quase. Esse texto representa aquilo que absorvi na minha leitura – de pessoa que ler, que entende com o seu olhar de leitora. Estas palavras são sobre algo que me desafia e sobre um caminho por onde eu ainda não havia pisado na literatura. Estas palavras também descrevem a minha capacidade de acolher e de entender outras visões diferentes das minhas, nesse caso não mais como leitora, mas como a escritora que tento ser.

Quando eu sentei para ler “A hora do Crime”, eu imaginei todo o contexto da história e já fui me “armando” para rebater aquilo que já estava previsto por mim. Engano. Eram “histórias”, e não uma só. Quando percebi a não ligação de uma com outra, a coisa começou a esquentar. Cada texto era uma porta – de entrada e saída.

O livro de Mércia Ferreira constitui-se de uma coletânea com 5 contos de terror/suspense que me fizeram ter um misto de sensações. Primeiro eu me senti retornando à cidadezinha de minha avó e ouvindo meus tios contarem histórias antigas, acontecidas com eles ou não, de me causarem arrepios e de me tirarem o sono. E ainda que muitas pessoas vejam nisso pouca significância aquelas histórias, hoje, enfeitam as paredes da minha infância e dão às minhas lembranças um gosto mais especial. Foi a partir dessas histórias que eu comecei a aprender a superar medos e a entender coisas que a minha mente era capaz de fazer. No entanto, os contos de “A hora do crime” andam longe de terem aquela “singela inocência” que adornavam as histórias de meus tios – esse livro é muito mais realístico e sangrento, a começar pela belíssima capa.

Desde o mistério ardente de Essência do fogo até A casa dos enforcados, cenas de crimes violentos, bárbaros, inesperados, mirabolantes e assombrosos são descritos com muita contundência e inventividade, configurando um cenário real ao texto de Mércia, nos permitindo associar a literatura ao cotidiano. Em O crime dos gatos primeiro me revolto com o crime cometido com a mulher e possivelmente o filho, e, em seguida, me sensibilizo com a trágica vida de Bruno, ainda tão criança e enfrentando um cotidiano tão sanguinário e assustador – perverso e cruel:

“O menino, senhor… Ele não está morto. Ele está aqui, nesta casa. O Bruno está vivo! E creio eu que ele presenciou a morte da mãe. Ele fez aquilo tudo!” (p.19)

O circulo também me causou uma grande comoção. A história promíscua de Jéssica e Flávio, regada de cumplicidade, “amor”, orgias e o trágico sentimento de posse, é contornada com um triste fim, principalmente para Jéssica, ainda que tanto tenha sofrido Flávio e seus familiares ao lidarem com aquela situação:

“A cena que os pais presenciaram foi aterrorizante. Flávio estava despido, com um cilício na perna, faltando uma mão; e Fábio, que usava bermuda, com a perna destruída pelo fogo, sangrava pela boca e pela nuca. O desespero passado por aquela família nas últimas horas valera por tudo o mais que haviam passado em 30 anos de casamento.” (p.44)

Os outros contos são bem elaborados com histórias de possessão e terror, nos fazendo questionar o peso de realidade recaído sobre eles – em outras palavras, me refiro à realidade em que todos estamos inseridos e certos dela, mas que se encontra aberta aos mistérios que envolvem o mundo de cá e o de lá. Mistérios e/ou pura fantasia e literatura.

Dessa forma, consegui assimilar que esse gênero é algo que nos faz “entender”, dentro das possibilidades que o exercício da leitura nos oferece, os caminhos escuros da psicopatia, da depressão, do medo, do abandono, e percebi aquilo que nós, seres humanos, somos capazes de fazer quando perdemos completamente a razão e a saúde mental. Vejo que de perto ou de longe todos já vivenciamos ou simplesmente acompanhamos algum caso parecido com algumas das histórias narradas por Mércia, e o quanto isso faz parte do nosso cotidiano. O “terror”, propriamente dito, faz parte da nossa realidade mais do que imaginamos, é um gatilho que, quando acionado da maneira errada, nos faz lidar com o que há de pior em nós.

Ler “A hora do crime” me reaproximou de mim mesma e me fez compreender que aquilo que prende alguns liberta outros. Um gênero que antes me era tão previsível e “chato” agora me instiga a abraçar tal leitura com uma proposta de me conduzir aos sentimentos mais genuínos que nós seres humanos possuímos e guardamos sem a coragem de conhecê-los e saber “domá-los”.

Vale ressaltar, ainda, o quão é importante realizarmos leituras de diferentes gêneros e permitir que essas leituras transformem algo em nós; nos permitindo rememorar lembranças importantes, perceber aspectos relacionados ao nosso cotidiano e a partir disso projetar futuros – um pouco mais sensíveis e engrandecidos de conhecimento e cultura. Acredite, o terror daquilo que não nos permitimos conhecer é o que nos causa mais medos e danos.

Por: Marciléia Ribeiro

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