O Gavião

Eu caminhava por uma rua estreita bem próxima de casa em direção ao muro branco do cemitério quando uma sombra me cobriu do sol que fazia arder meus braços descobertos.

Olhei para cima e lá estava ele, planando pouquíssimo acima da altura de minha cabeça. É isso! Esse deve ser o tão falado prazer de viver, pois pude presenciar a plenitude daquele enorme gavião altivo, imponente, despreocupado, desprendido. Ele se movia com a delicadeza de uma folha despencando devagar da árvore, em círculos, ao redor de mim. Quem sou eu sem o gavião? Quem sou eu sem a certeza de algo tão maior do que eu, do que todos nós, existindo sobre o mundo e para além dele, bem acima, indo e vindo quando deseja?

Aquele momento só permanecerá comigo, aqui dentro, pois não tenho capacidade para reproduzi-lo em forma de imagem, e gostaria ainda de poder me lembrar com nitidez ao longo das horas boas e das horas turvas – que virão resto da vida à frente.

Éramos apenas nós dois: o que havia em volta pareceu não mais alcançar a solidão que partilhávamos em harmonia silenciosa; as pessoas estavam dentro de suas casas bem como os outros pássaros certamente se escondiam amedrontados de minha companhia repentina.

A sua vida era tão sua quanto a vida humana nunca será de ninguém, porque falta a calmaria necessária e a coragem selvagem para olhar contra toda a bobagem e voar sem olhar para trás. Ou olhar quando for de própria vontade, e nada além disso. Ele é livre no simples existir e nós continuamos tentando os vinte passos da autenticidade sugeridos nas redes sociais, ao passo em que destruímos os que estão cada vez mais abaixo na escala coletiva e global.

O gavião não imaginaria que a partir daqueles segundos em que me concedeu a honra de sua presença tão de perto eu me agarraria com tamanha força a ele, ao seu voo tranquilo e à voluptuosidade da performance natural do ser independente. Não, ninguém é tão autônomo quanto o gavião, nem o algoz preso em suas armas de fogo.

Desejei ter a selvageria que o movimenta, a qual por sua vez é, essencialmente, pura e imaculada, o que faz desta uma dádiva que não me chegará jamais na condição de humana. E não deve. Nenhum de nós a merecemos por razões tão óbvias que sequer preciso mencionar. E banhado pela mais terna das admirações, espero conseguir ao menos lutar contra minhas próprias asas quebradas e penas soltas, sair do abismo e buscar um dia alcançá-lo, mesmo que minimamente para mais um encontro como o daquele dia.

O gavião claramente veio depois de mim e é mestre em viver. Eu, que vim muito antes, ainda estou procurando em angústia aprender o básico. O gavião me ensinou tantas coisas que provavelmente levarei mais tempo do que imagino para compreender.

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