Lobisomens e Vira-bichos no Piauí

No centro da imagem, há o desenho de três cabeças de animais: de um lobo, de um bode e de um cavalo. Do lado esquerdo está escrito "Lobisomens" e do lado direito "Vira-bichos". O fundo da imagem é da cor roxa.

 

Revisão: Joana Tainá

Quando você pensa que já viu de tudo sobre lobisomens, vem o daqui que “não senta os pés no chão, caminha com os cotovelos e os joelhos”¹. Por essas bandas, a figura pop meio humana e meio loba é substituída por um meio porco, bode, jumento ou outro animal de convívio mais próximo de nós.

As transformações também são um pouco diferentes. A lua cheia não tem um papel tão importante assim, e um lobisomem em geral pode surgir nas madrugadas de terças e sextas-feiras. Para isso acontecer ele precisa rolar no chão sobre um espojeiro, que é o lugar onde os animais se deitam e se esfregam para coçar as costas. Depois disso, a pessoa já se levanta transformada.

Em alguns relatos, a criatura é tão peluda que não é possível ver muito mais do que isso, como se ela não tivesse nem pé nem cabeça:

“e o bicho não andava, só rastejava, como se rolasse pelo chão, mas conseguia fazer movimentos bruscos como pular… (…) não conseguia ver se haviam patas naquele animal, só dava pra ver um monte de pêlo barulhento” (Causos Assustadores do Piauí).

No Brasil, a licantropia é entendida como um castigo – às vezes com um peso moralizante – ou como uma maldição, um exemplo disso são as histórias em que o sétimo filho vai se transformar em um Vira-bicho. Além disso, ela é encarada como uma espécie de moléstia também: um lobisomem quando está na forma humana tem o aspecto abatido, “magro, descarnado, vacilante, olhos apagados”, como se fosse uma “vítima de verminose”². Como se isso já não bastasse a dieta não é das melhores, ela inclui comer terra, titica de galinha e gordura para se fazer sabão. Uma delícia.

Dois causos de lobisomens

Dentre as diversas histórias de encontros com lobisomens, escolhi duas. A primeira delas se repete bastante, a versão que peguei está registrada no livro Lendas e Fatos (Crônicas do rio Gurguéia) de Artur Passos, publicado em 1958. O causo é o seguinte:

“O Júlio Bôca da Noite, imaginoso e fabulista, contava cousas arripíantes. Já vira ‘mulas-sem-cabeça’ e sabia de um certo sujeito que virava ‘Lobishomem’. O Antônio Lima, por exemplo, ex-amante da Joaquina Simôa, era apontado como tal.”

Em um certo dia, o casal saiu para passear pelo roçado. Conversa vai, conversa vem, os dois se demoraram tanto que voltaram para casa só depois que a noite caiu. Na porteira da roça, Antônio Lima pediu para Joaquina esperar um pouco enquanto ia buscar algo. Não precisou de muito tempo para um bicho aparecer correndo e atacar Joaquina, que tratou logo de subir na cerca para ficar fora do alcance das garras e dos dentes, se salvando. Porém, antes de desistir e sumir no mundo, o lobisomem conseguiu rasgar a barra do vestido dela.

“Com a fuga do bicho reaparece o companheiro desapontado, arquejante, imundo. Passaram mal a noite e a (Joaquina) Simôa, pela manhã, observou, horrorizada, por entre os dentes do amante uns esgarçados fios de sua sáia mastigada pelo ‘Lobishomem’ na cêrca do roçado.” (Artur Passos – Crônicas do rio Gurgéia)

No mesmo dia, ela fugiu de casa.

Quem traz outra história dessas é Áurea Queiroz (2005), ela fala de “um homem no povoado Limpeza, do município de Esperantina, que virava bicho”. Ele morava junto da esposa, e tinha o costume de sair de casa e sumir por um tempo. Era nesses momentos de saideiras que a mulher percebia um jumento parado “na porta de sua residência” a observando.  Ela “espantava o animal. Mas ele não saía”.

Um dia, a mulher estava em casa sozinha e apareceu um bicho bem diferente, como ela nunca tinha visto antes, e muito valente. Ele corria atrás dela e ela subia nas cadeiras, nas mesas, e o bicho pulava até que rasgou um pedaço de sua saia. Mas ela conseguiu subir na cumeeira da casa e o bicho horripilante foi embora.

No outro dia, o marido apareceu. Depois do almoço a mulher foi fazer cafuné no homem, ele dormiu que abriu a boca, então ela viu um pedaço de sua saia entre os dentes dele. Esse homem já morreu há muito tempo, mas a mulher é viva. E no povoado as pessoas comentam que ela também vira bicho. (Áurea Queiroz – Brincadeiras de criança)

Um detalhe que chama atenção, é que o homem se transforma em mais de um animal, no entanto, o principal deles é um jumento. Isso conversa bastante com outros relatos de pessoas que avistam, no meio de estradas, jumentos de olhos vermelhos brilhando no escuro. E para piorar: aqui é um casal, não bastando um, há dois vira-bichos nessa história da Áurea.

Ao que parece o marido conseguiu de alguma forma compartilhar a condição de vira-bicho para a esposa. Enquanto ambos estavam vivos, “um morador do povoado ia passando de moto e viu os dois de mão dadas”. Na mesma hora, ele se virou para confirmar o que tinha visto, no entanto, não encontrou mais gente, e, sim, dois jumentos “emparelhados”, dois lobisomens.

Referências

¹ Amarante – Folclore e Memória – Nasi Castro 

Brincadeiras de criança – Áurea Queiroz

² Licantropia Sertaneja – Câmara Cascudo (leia aqui)

Causos assustadores do Piauí (acesse aqui)

Lendas e Fatos (Crônicas do rio Gurguéia) – Artur Passos (leia aqui)

Lobisomens (Geleia Total)

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