A casa falou comigo, por João Wilker

Casa da Cultura/ Acervo da @casadaculturathe/ Foto: @u.4stro_

Não me surpreendeu nada que uma casa tão sofrida tivesse aprendido a falar. Estava, ela mesma dizia, por um fio. As janelas de duas abas, altas e de madeira pintada a verde, estavam já escurecendo e saindo de suas juntas. Caíra um dos corrimãos que auxiliavam a subida até a porta do segundo andar, claro sinal de que não houvera muito subimento. A casa, no entanto, falou comigo, e tinha a voz de uma senhora rouca, de cabelos brancos, e falava como quem se lembra: 

 

— É, meu filho… Me deixaram aqui, difícil virem me visitar… Meus filhos… Mas eu ainda me lembro, quando o Barão… 

 

E pôs-se a falar sobre o Barão, que a construíra para abrigar sua família ali pelos 1880. Como ele projetou suas janelas para que o vento as tocasse, como seu teto aguentou as chuvas por todos esses anos, como viu nascer a praça, e a parada de ônibus – achava os Ônibus uma grande novidade, pois tivera visto as carroças, e nunca deixou de admirá-los. Disse que o Barão também acharia os ônibus magníficos. 

 

Contou que não fazia muito tempo que a vizinha favorita, a Casa de Iansän, tinha aparecido ali ao lado, deixando um perfume de incenso carinhoso descendo sobre a rua, e cobrindo quem passava com aquela sensação única. Não queria chamar a lojinha de filha, preferia pensar nela como irmã mais nova. Parecia-lhe mais permanente. 

 

— Filho eu já tenho demais, não é? Mas eles vão, não tem viga, nem tem cimento que prenda. Eu teria mais sorte prendendo a chuva…

 

E já chegava a prender mesmo. As paredes estavam inchadas, não apenas do inchaço que vem com a idade, mas a umidade que ia separando-lhe as camadas de tinta. Mais uma vez, o corrimão de madeira que auxiliava ao segundo andar tinha caído, por umidade, também, mas esse era uma outra história, porque essa escada dava de frente à praça, e, portanto, tinha para a antiga casa do Barão outro efeito da idade: Tinha perdido uns dentes do seu sorriso…

 

Eu estava claramente abismado, e meio tonto, já que o sol do meio-dia era quente e a senhora tinha me pego de surpresa. Cambaleei para a sombra das árvores da praça Saraiva, e continuei olhando-a. Tinha razão sobre a coisa dos filhos, que, para as casas, funcionam diferente. As pessoas nascem de duas mães, da pessoa e da casa. De dois pais, se forem de apartamento, eu presumi. E desse pensamento, não se para de renascer nunca, porque nunca se param de visitar novos lugares, mas também não esquecemos de casas-mãe. 

 

Tenho o receio de que tomem a senhora por frágil, certamente não era essa a impressão que sua voz me deu. Era forte, forte em lembrar e em aguentar a lembrança, e dava nomes a coisas e pessoas as quais eu não poderia ter conhecido, pois era minha antecedente de quase duzentos anos. Tivera sido moradia, seminário, falava do governo episcopal, e parou antes de falar da ditadura, mas não precisava, porque eu via em suas paredes os pixos – que são, para as casas, como as nossas tatuagens – que diziam: Ditadura Nunca Mais…

 

Mas outra coisa além dessa abalava a sua estrutura, pois era na sua voz apenas que eu a ouvia, mas pude lhe imaginar, de olhos baixos e boca seca, ajeitando um turbante colorido no cabelo e parando os brincos de balançarem muito. O rosto desprovido de maquiagem, exceto por umas marcas que a chuva… Teria sido a chuva? 

 

Ela respirou fundo, que eu soube pelo silêncio que ficou por cima das motos e carros. Quando voltou a falar, estava um pouco trêmula, não exatamente na voz, mas pude ver a construção se balançar um pouquinho. 

 

— Nasci foi pra ser importante. É. Tu lembra, menino, da orquestra, do balé da cidade… Vinha gente toda sexta, vinha. Ah, e aquele curso de reciclagem…

 

E ela falava, agora cheia de arte, ainda rouquinha, mas vibrante sob um filtro de gravação dos anos 2000, de uma câmera de mão. Talvez fosse minha memória que pusera vida à senhora. Mas ela falava, mesmo assim. 

 

A meu respeito ela falou que lembrava, sim, de eu correndo pelos corredores, batendo a mão nas madeiras de sustento e imaginando histórias, contando coisas. Das tardes que fiquei esperando minha mãe sair do trabalho, esperando ali. Foi nessa brincadeira que virei seu filho, também. Até, eu mesmo, tivera feito parte daquele curso de reciclagem…

 

Ia ficando tarde para essa conversa, primeiro porque meu ônibus já passava, e segundo porque eu estava a um bom tempo de boca semiaberta, encostado na grade da Praça Saraiva, ouvindo a senhora de longe. Ela numa cadeira daquelas de balanço, e aquele vestido rasgado… 

 

De repente, a mãe sumiu, e vi só a casa. A casa que dava esquina, e pela qual passavam carros e pessoas caminhando, cheia de pixos e outras pinturas não planejadas pelo Barão. Pensei em sair falando às pessoas da parada sobre a Casa da Cultura, e que ainda estava viva, e que ainda tinha fôlego para falar e contar histórias. Teria sido apenas mais um doido na praça. 

 

Pus meu passo adiante, jurando escrever um texto. Está aí, escrito, para que não me chamem de doido de praça, e, sim, de doido de página, mas só há verdade no que eu conto. A mãezinha da cultura está ali, ainda, e se quiser ouvi-la, é só visitar a sua redondeza. Está de portas fechadas ainda, para não deixar as memórias escaparem. 

João Wilker da Fonseca Marques

Nascido em Teresina – PI, 19 anos, estudante de Letras Português na Universidade Federal do Piauí, com trabalhos publicados em coletâneas como a Coletânea Clarear (Centro Acadêmico de Letras Torquato Neto) e Pequenas Palavras, Grandes Sentimentos (Editora Obook), morando atualmente em Timon – MA.

Contatos:

joowilker@gmail.com;

Instagram.com/joaowilkerfm;

X.com/moonyinspired.

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