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Um baú de narrativas: a vida e a literatura de Valéria Silva

Arquivo pessoal

Fruto do périplo familiar de três estados nordestinos, Valéria Silva nasceu na zona rural de Presidente Dutra, no Maranhão, em 1962, e desde criança cultivou a arte que lhe guiaria por toda a vida: o talento e privilégio de ouvir e enxergar as narrativas ao seu redor, em especial, as pessoas que nele o habitam. Caçula de quinze filhos, ainda jovem, já no Piauí, tornou-se a primeira mulher a presidir o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade do Piauí (UFPI), local em que publicou pesquisas e estudos, e lecionou por mais de 30 anos, até a sua aposentadoria, em 2019.

A Geleia Total conversou com Valéria Silva em abril de 2025, ao som de crianças e trabalhadores(as), no Sesc Cajuína de Teresina. Valéria refletiu sobre a sua infância e juventude no Maranhão rural, a vinda para os estudos em Teresina aos 16 anos, a sua trajetória acadêmica e literária, bem como os futuros passos que guiarão a sua jornada.

Foto: Arquivo pessoal da autora.

Geleia Total: Vamos regressar ao início. Como foi a sua infância e juventude, em especial, no que tange ao contato com a literatura?

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Nasci na comunidade Santa Luzia, no interior do Maranhão. Na minha infância, não existia nenhuma possibilidade de uma criança ler nada. Algo extremamente difícil de ocorrer num meio rural abandonado por todos. Aquela famosa invisibilidade programada que tristemente tanto observamos em relação ao meio rural e que, claro, não é à toa: ela faz parte de um plano de ação que afasta a população dos meios educacionais e demais direitos. Um propósito do nosso país de produzir uma existência rural sem acesso a serviços básicos, como educação de qualidade, e sem nenhum respeito à população, à sua cultura e aos seus territórios. Em Santa Luzia, essa realidade não era diferente. Fato é que, quando eu tinha sete anos de idade, minha família migrou para Codó, porque meus irmãos já estavam fatigados do pesado trabalho com a roça, sem ver perspectivas de melhora.

Foi lá, em Codó, que eu comecei a ir para a escola e me tornei uma leitora, muito incentivada pela diretora do meu grupo escolar, a Dona Terezinha. Lembro que, durante o período de férias, ela abria a biblioteca para que pudéssemos pegar livros emprestados. Ela era fantástica; é a imagem de boa educadora que trago nas minhas memórias. Um doce de criatura, de uma gentileza ímpar, sempre buscando nos incentivar nos estudos. Lembro dela andando pela escola falando com a gente, para pegarmos livros para ler. Eu era sempre a primeira da fila.

Depois, quando saí da escola primária para ir ao ginásio, lembro que uma vizinha minha tinha um livro, de capa estava rasgada, faltando as primeiras folhas e eu o peguei para ler. Eu me apaixonei de cara. Fui procurar saber qual era este livro sem capa que eu estava lendo. Era Reinações de Narizinho. Muito encantada, depois fui ler outras obras do Monteiro Lobato.

Além disso, eu lia o que surgia, lia o que tinha ao meu alcance. Nesse período, eu lia muito Turma da Mônica. Eu adorava os almanaques da Turma da Mônica, comprava as revistinhas, trocava na escola por outras… era hábito trocarmos revistinhas e isso fazia com que tivéssemos muitas para ler. Mais tarde, lembro que lia também os romances populares com histórias de amor açucaradas, como Sabrina.

Então, a minha infância e pré-adolescência, por assim chamar, foi muito marcada pela leitura. Mais tarde, assinei o Círculo do Livro, para ter acesso a outras obras. Assim, comecei a ler mais clássicos brasileiros e universais. Minha família era bem pobre e eu não tinha dinheiro para comprar livros. Então, comecei a fazer pequenas vendinhas, pela revista Hermes. Por lá vendia panelas, roupinhas, colares e várias outras coisinhas. Eu vendia e com o dinheiro pagava a mensalidade do Círculo do Livro. Eu lembro que o primeiro livro que li deles foi Vinte Mil Léguas Submarinas, de Júlio Verne, e até hoje guardo este exemplar com carinho, como recordação. Foi por lá que também comprei O Morro dos Ventos Uivantes, e vários outros clássicos.

Fiquei em Codó até os meus dezesseis anos, quando vim concluir os estudos em Teresina. De lá para cá, já se foram mais de quatro décadas. Aqui no Piauí, primeiro estudei no Liceu Piauiense, e depois fui para a Universidade Federal do Piauí, onde realizei minha graduação.

Foto: Arquivo pessoal da autora.

Geleia Total: Quais os livros que lhe influenciaram no passado e quais as obras que marcam a Valéria do hoje?

Um livro que me influenciou muito desde que li foi Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Eu achei fantástico, de verdade; toda a construção dos personagens, a proposta linguística, mitológica e geográfica construída pelo Guimarães Rosa é fenomenal.

Vidas Secas, Os Sertões e O Quinze também foram obras que me marcaram muito, porque, de alguma maneira, era a história da minha família. A minha história. Então, O Baú de Faustina, embora contando a história da minha família e emoldurado por um ambiente piauiense, bebe bastante dessas fontes.

Hoje ando lendo alguns livros cubanos. Quando fui à Cuba, comprei um monte de livros e só agora estou tendo tempo para lê-los. A biografia de Célia é um livro fantástico. Passagens da Guerra Revolucionária, do Che, é emocionante demais e o Fidel Castro: Antologia Mínima também. A história da América Latina também me interessa muito, sabe? É a nossa história. Também acho que a sociologia rural me marcou muito nesse processo. Tanto a leitura quanto minha produção acadêmica. Eu sempre tive muito interesse em estar próxima e compreender sociologicamente as questões rurais que nos cercam.

Por exemplo, no Baú [O Baú de Faustina] há um posicionamento bem claro, fruto dessas pesquisas e leituras. A minha posição política está ali expressa, porque tenho esse estofo da sociologia e da antropologia rural e a inspiração dos clássicos que trouxeram as questões do Nordeste, as questões rurais para a pauta literária.

Já enquanto leitora de poesia, gosto muito de Mário Quintana e Manoel Bandeira. Gosto de Da Costa e Silva; de Hardi Filho; de Chico Miguel de Moura. Leio sempre alguma coisa do Ozildo Batista de Barros e gosto das poesias de Marco Aurélio. E aí vou costurando minha partezinha na linda colcha de retalhos que é nossa jornada literária brasileira e piauiense.

Foto: Arquivo pessoal da autora.

Geleia Total: Valéria, nos conte um pouquinho sobre a sua carreira acadêmica, enquanto professora da UFPI.

Em 1988, passei no concurso da Universidade Federal do Piauí. Naquela época, a gente prestava concurso só com a graduação, né? E a própria universidade incentivava e dava a oportunidade de você fazer sua carreira acadêmica já estando no seu quadro. Então, fui professora da UFPI, fiz mestrado em Ciência Política, na UFPE, e doutorado em Sociologia Política, na UFSC. Nessa jornada toda, eu já tinha meus filhos, e eu sempre tive uma preocupação muito grande em combinar a minha presença na vida dos meus filhos com a minha carreira acadêmica. E você sabe o que significa isso para as mulheres, né? São decisões que nos impactam muito.

Uma das coisas que eu escolhi logo, foi não fazer pós-graduação em megalópoles, como rio e São Paulo. Queria que meus filhos não perdessem o contato cotidiano mínimo com a natureza, com o convívio humano coletivo. Por isso, eu escolhi primeiro Recife, e depois Florianópolis para cursar mestrado e doutorado. Boas universidades e lugares menores. Só anos depois, já em 2010, eu fiz um primeiro pós-doutorado, que foi na Federal Rural do Rio de Janeiro. Nessa época meus meninos ainda não eram adultos, mas já eram grandes; o menor já tinha seus dezessete anos. Já estavam acostumados com o meu ritmo de vida como professora universitária e tinham condições de gerenciar o dia-a-dia básico de suas vidas em Teresina. Oito anos depois, eu fiz outro pós-doutorado, desta vez na Universidade Nacional da Colômbia.

Claro, as jornadas de pós-graduação stricto sensu geram uma imensidão de leituras e de produção acadêmica, a partir das aulas que frequentamos, das pesquisas que realizamos e os artigos que escrevemos e apresentamos em congressos. Quando retornamos, é tempo de organizar ou lançar livros, escrever capítulos, artigos em revista etc. São tempos de muita atividade intelectual.

Foto: Arquivo pessoal da autora.


Geleia Total: Onde entrou a escrita e a literatura nesse processo todo? Como surgiu O Baú de Faustina?

Sendo professora universitária, principalmente pesquisadora, você vai estar inserida no universo das publicações acadêmicas. Comigo esse processo não foi diferente. Contudo, ao longo de anos eu mantinha a escrita do Baú como meu espaço criativo, sem maiores pretensões. Só mais recentemente, depois que eu me aposentei, busquei me aventurar pelo universo da publicação literária. Foi deste novo momento de vida que, em 2019, O Baú de Faustina tomou forma definitiva, foi publicado e esteve nas feiras e livrarias.

Ele [O Baú de Faustina] nasceu de um desejo de reaproximação com a minha mãe que faleceu no ano 2000, e de ressignificação desta saudade.

Foi um processo longo de adaptação a essa ausência definitiva, entende? De algum modo, minha mãe esteve ausente do cotidiano da minha vida porque eu vim embora com dezesseis anos. A partir daí, eu me vi sozinha, eu não tinha quem me orientasse, me acolhesse. Então, ao longo dos anos, senti demais esta falta dela, mas, em algum lugar talvez eu achasse que um dia isso se refaria. E quando ela faleceu, me coloquei diante do fato de que, definitivamente, eu nunca mais a teria próxima a mim.

A partir daí, eu fui elaborando esse sentimento e descobrindo mais tarde que eu, na verdade, não tinha elaborado nada dele por toda a vida. E depois que me aquietei mais, após o primeiro pós-doutorado, eu voltei a pensar demais na minha relação com minha mãe, em tudo que ela foi, tudo que ela significou para nossa família e tive a clareza de que eu ainda não havia elaborado direito esse sentimento da falta definitiva.

Comecei a me lembrar das histórias que ela me contava, uma ou outra, e passei a escrevê-las. Eu sempre fui uma ótima escuta para minha mãe, e agora estava escrevendo algumas recordações minhas e dela, como uma forma de reaproximação mesmo, procurando reconstituir esta presença.

Minha mãe me contava todas as histórias da nossa família. Ela foi uma piauiense em diáspora que nunca se esqueceu do Piauí. Nunca perdeu sua linguagem, seu sotaque. Ela contava as histórias que viveu aqui com uma clareza que parecia terem acontecido ontem. Alimentava-se disso. Ela foi envelhecendo e aí repetia as histórias. Repetia, repetia, repetia. E eu gostava de escutar. Às vezes, eu mesma pedia para ela contar esta ou aquela história novamente. Ela gostava demais.

Foto: Arquivo pessoal da autora.

Por alguma razão, enquanto ouvia as suas histórias, eu anotava coisas. Por exemplo, minha mãe sabia de pertenças, de nomes, de datas, quem nasceu, quem morreu… tudo sobre a nossa família, e eu ouvia e anotava coisas aqui e ali. Tanto que no O Baú de Faustina tem coisas provenientes destas anotações originais. Até hoje as guardo. Então, nesse processo de reconexão com minha mãe, fui escrevendo e quanto mais eu escrevia, mais eu abria portas que eu nem lembrava mais que existiam. Porta para mais histórias. Eu nem sabia que tinha guardado tantas histórias, mas foram surgindo, surgindo, surgindo…

E não tinha rotina, normalmente eu escrevia quando a saudade apertava. Por mais de cinco anos, eu anotei num caderninho o que lembrava, como histórias mesmo. Depois é que tive coragem de mostrar ao pai dos meus filhos. Ele me disse que as narrativas eram muito interessantes e que eu deveria publicá-las. Lembro que eu falei: “Não! Eu vou publicar a história da minha mãe? História da minha vida? Intimidades da minha família? De forma alguma!”. Muito mais tarde eu mostrei pro Ozildo. Ele leu e disse a mesma coisa: publique. Devo dizer que uma segunda pessoa me falando aquilo, me colocou aquele grilinho falando na minha cabeça, rodando a dúvida: “Será?”. Depois, descartei novamente a possibilidade.

Quando eu já estava lá para as duzentas, trezentas páginas, pensei novamente: “Gente, será que eu devo publicar esse livro?”. Aí conversei com meu grande amigo Wellington Soares, e ele não me deixou mais em paz. (risos). Daí, aos poucos, fui conciliando com a ideia da publicação. Mas, aí veio novamente a dúvida: “O que os meus parentes vão pensar a respeito disso? Dessa exposição da nossa intimidade familiar?”.

Então, fiz um grupo de WhatsApp com as mulheres da família, no fim de 2017, e nele expliquei toda a ideia e mandei trechos do livro para que avaliassem. Afinal, estamos falando da memória de nossos pais, avós e antepassados, né? E para o meu espanto, as mulheres piraram! Unanimemente, se posicionaram a favor da publicação. Aí, fui me convencendo mais e o livro saiu em dezembro de 2019, meses antes da pandemia.

Geleia Total: E quanto às suas demais obras, Valéria? O que você anda escrevendo?

Em 2022 publiquei o livro A Agroecologia no Piauí: trilhas e tramas para o bem viver, uma coletânea de relatos que recupera a história da agroecologia no Piauí, da década de 1980 à 2022. Este foi um preito que eu devia aos agricultores e agricultoras que construíram a agroecologia piauiense. Nessa jornada, me juntei a algumas amigas, e nós organizamos esse livro com mais de 500 páginas, e com uma participação de quase oitenta autores e autoras, de todo o Estado. Produtores(as), técnicos(as), professores(as), alunos(as) envolvidos(as) neste processo. Foi uma verdadeira arregimentação de força, feita durante a pandemia. O livro é produto também deste momento de dificuldades da pandemia e foi um alento muito necessário. Encontramo-nos virtualmente, apoiamo-nos, socializamos ali nossas contribuições, mas também nossas dores, medos e esperança. Além de ser uma obra de referência por si, ela é também a síntese do que vivemos ali.

Já no Salão do Livro do Piauí de 2024, lancei uma coletânea de poesias intitulada Acenos da Alma. Não sou poeta e não há em mim a ambição de ser, mas compilei nesta obra algumas de minhas poesias “engavetadas”, por assim dizer, e fui fiel ao meu atual princípio: vou publicar, depois a gente conversa sobre (risos). Porque sempre tive muita clareza sobre a qualidade do meu texto acadêmico. Sei avaliá-lo bem. Mas na literatura… eu tinha muitas inseguranças pela falta de experiência. Agora, já não me ocupo disso. Escrevo e publico.

Atualmente estou escrevendo um livro chamado Sensores, que eu espero lançar no SALIPI deste ano. É também obra poética, talvez o meu segundo e último livro de poesias. Eu não escreverei mais poesias, porque elas já responderam a uma demanda interna de certos estágios da minha vida que hoje, acredito, estão satisfeitos.

Poesia, para mim, é o que vem pronto de dentro para fora. E elas vêm prontas porque é este chamado arrebatador. Eu não tenho talento, eu não sou poeta, tecnicamente falando. Eu ponho no papel o que me castiga a mente, o coração ou o que os toma de alegria.


Atualmente, também estou escrevendo, com algumas dificuldades de tempo, de agenda mesmo, outro livro chamado Fulô Seca. É uma narrativa de ficção, ambientada também no Piauí rural entre as décadas de 1930 e 1950, sobre uma moça que irrompe com a ordem patriarcal. É uma “Faustina ficcional” mais politizada, que não aceita as suas mazelas sociais. Age impelida pelas condições de vida, pelo que teve que enfrentar e pelos homens com quem lidou. É um livro que trata essencialmente dessa relação da mulher com o seu entorno, com o mundo de sufocamento da condição feminina, de cerceamento de caminhos, da imposição de padrões de comportamentos. Daqui a um tempo, estará circulando por aí.

Foto: Arquivo pessoal da autora.

Geleia Total: Valéria, atualmente você vive e frequenta bastante o seu sítio, local de repouso, como você sempre costuma falar. De onde veio esta relação com esse sítio?

Desde menina, os primeiros sons que eu ouvi foram sons rurais. Tanto no ventre da minha mãe quanto quando eu nasci. Passei sete anos ininterruptos ouvindo sons, vendo paisagens e partilhando vivências do campo. Portanto, a minha primeira infância passou-se no campo. Então, não há dúvidas: a minha identidade é esta. Eu sou uma mulher rural. Apesar de eu ter vivido na cidade; apesar de eu conhecer catorze países; apesar de eu morar numa cidade grande; apesar de eu ter sido professora universitária; sou uma mulher de origem e pés muito bem fixados no campo. A minha identidade é rural. E eu me achei definitivamente com ela quando eu estava fazendo doutorado.

Antes, eu já estava sempre envolvida com o MST, fazendo assessoria e tudo mais, ministrava as disciplinas sobre as realidades rurais piauienses na UFPI, as quais eu mesma propus na graduação e depois no mestrado de sociologia. Durante os anos, a minha escolha sempre passou pelo interior, costumes rurais, como farinhada, festas rurais etc. A maioria do lazer e turismo que ofereci aos meus filhos foram viagens para sítios, para hotéis fazendas, vivências em parques, rios, cachoeiras etc. Durante o doutora, em Florianópolis, isso se intensificou demais! Só que eu não racionalizava todo esse interesse e energia que eu punha neste modo de viver.

Apenas alguns anos depois, já no fim do doutorado, que eu me coloquei diante de algo que fez parte de toda a minha existência sem que eu me questionasse. “Gente, eu passei a minha vida inteira me acercando das realidades rurais!”. Na época, fiquei pensando bastante nesta constatação. E muita coisa foi mudando na minha vida.


É engraçado… quando a gente adentra os trinta e poucos anos, a gente faz uma revisitada na vida. A gente dá pausas para conferir tudo. Foi nesse processo que me descobri com a necessidade de aprofundar ainda mais minhas relações com o universo rural. Aí, tomei uma decisão: “Quando eu chegar em Teresina, vou comprar um sítio”.


Resumindo aqui: comprei o sítio, no povoado São Félix, em meados de 2008. Desde lá, já há dezessete anos, é o meu lugar de paz, de recarga, de encantamentos e de renascimento. No sítio, eu consigo viver no tempo da natureza, contemplar as paisagens e eventos que só existem lá, consigo encontrar-me consigo mesma. Durante a pandemia, morei lá por dois anos e meio, sozinha. E foi uma experiência ímpar, porque há muitos anos eu não vivia só e foi muito revelador, pedagógico e encantador estar no campo, sozinha. Meus filhos ficaram em Teresina e eu fui para o sítio. Em todos os sentidos foi muito bom.

O sítio hoje é esse lugar de paz interior, de retorno e reencontro. Lá eu planto alguma coisa, colho. Cuido das minhas plantas, faço meu artesanato, lido com a marcenaria, a costura etc. Hoje já não tenho mais tanta condição física para fazer roças como no passado, mas ainda me aventuro com o auxílio de um rapaz que trabalha conosco. Não me imagino sem aquele lugar. O Baú de Faustina foi 100% escrito lá. Nada dele foi escrito fora do sítio. E isso também é importante para mim.

Lá é exatamente o lugar de tempo kairós, de ócio criativo. No sítio, eu faço apenas o que eu tenho vontade. Geralmente, eu estou fazendo três ou quatro coisas ao mesmo tempo por lá, sem pressa. Posso estar fazendo crochê, escrevendo, estar no meu ateliê, lavando cadeiras, mudando plantas ou trabalhando na oficina de marcenaria, tudo ao mesmo tempo. Meu companheiro, às veze,s diz “Moça, você não se aquieta e não termina as coisas”, eu respondo: “Moço, e quem disse que eu quero terminar? Na verdade, no seu tempo, cada coisa é finalizada. Sem metas.

Às vezes fico lá só observando a mata. Eu observo tudo; observo como as formigas cortadeiras vão guardando comida para o inverno, ou ouço atentamente o barulho da água correndo… Fico prestando atenção em tudo. Como também sou fotógrafa, tenho uma imensidão de fotos desses pequenos eventos da mata e dos arredores do sítio. Uma coisa que, por exemplo, eu gosto de fotografar, é a florada da unha-de-gato, que é cheirosa e bonita. Também das mangueiras. Gosto de fotografar as flores todas, os insetos, os animais… Eu fotografo vários planos de cada coisa. Para quê? Para nada. Não é útil, nem é necessário. É porque eu gosto de fotografar. Porque tudo isso é lindo e passageiro. Deleito-me com a beleza capturada de cada momento, portanto.

Fotos: Arquivo pessoal da autora.


Geleia Total: Valéria, qual conselho você deixa às pessoas que, assim como você, possuem a sua história para contar, mas não contam devido ao medo ou a timidez? Qual o seu conselho para a Valéria do passado?


Estes são medos e receios que tive bastante, como já mencionei, mas que foram e continuam sendo cada vez mais superados. Às vezes, é preciso a gente arriscar. A gente não constrói nada se a gente não se arriscar um pouco. Para mim, a literatura responde a anseios muito particulares. Então, você não tem como saber se A ou B ou C vão gostar. Você não tem como saber isso e talvez não precise saber disso. Você só vai saber se você superar um pouco com o medo e a vergonha e publicar. O mesmo ocorre com a poesia: um livro de poesia pode não fazer sentido para um, mas faz total sentido para outro leitor. Acredite nisso.


Fundamentalmente, precisamos não ceder às comparações opressivas, ninguém precisa ser um Carlos Drummond de Andrade para publicar suas poesias. Comece a escrever e publicar para ser você mesmo, apenas. O que você tem que fazer agora é arriscar um pouco. Acreditar que a literatura tem demandas íntimas, portanto, é também experiência particular. Ao mesmo tempo, dialoga com outras experiências. O livro fará conexões, é fato. E se der “errado”, você vai lá e escreve outro.

É isso que eu estou fazendo. Quem disse que eu sou poeta? Quem disse que eu sei escrever romances? Mas este senão não me impede de publicar meus livros. São meus, funcionam para mim. E, claro, fico muito feliz quando eles alcançam diversas outras pessoas e realidades. Significa que estou conseguindo me estender e trocar com outras experiências. Se tiver de existir meta, talvez seja esta: tecer com os outros a linda oportunidade que é nossa vida.

Valéria e seus filhos. Foto: Arquivo pessoal da autora.

Ficha Técnica:

Nome Completo: Marlúcia Valéria da Silva (Valéria Silva)

Descrição: Escritora; professora aposentada.

Local de Nascimento: Presidente Dutra (MA)

Escrito por: Guilherme Torres

Revisado por: Paulo Narley

Contatos: valeriasilva.thepi@oul.com.br

Redes sociais: @valeriasilvapi (Instagram)

Outras fontes:

https://ufpi.br/ultimas-noticias-ufpi/56328-professora-egressa-da-ufpi-valeria-silva-lanca-seu-primeiro-livro-de-poesia-no-bate-papo-literario-do-salipi-2024
https://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2022/03/05/professora-aposentada-escreve-livro-sobre-a-historia-da-zona-rural-de-teresina-em-homenagem-a-mae.ghtml
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