O abraço de Filomena, por Alisson Carvalho

Nos inóspitos arredores do nada, lá onde os olhos já não vagueiam, finos projéteis de raios solares anunciam a alvorada. Eram as tintas naturais tais quais as pinceladas espiraladas, geométricas e pictóricas das laranjas ensolaradas que só lembravam as telas de Jader Damasceno. Já despidos das carnaúbas centenárias, os outeiros surgiam como sombras onduladas. De quando em vez uma ave aterrissava e, projetando os seus agudos cantos diuturnos, lembrava daqueles antigos outubros cujas folhas dançavam no tocar do vento.

O vapor turvo do calor da terra abandonava, com o primeiro sinal das lufadas de janeiro, os poros das rochas da chapada verde, lá onde os coriscos caiam como chuviscos sem nenhum floreio. Diamantes de água desprendiam-se das cinzentas nuvens e, por alguns instantes, uma fina camada de gelo cobria a superfície da relva.

Apesar do silêncio, mesmo com o frio álgido e embora estivesse úmido, os pés de Filomena dançavam no lamaçal. A cidade demorou a despertar e ninguém compreendeu os avisos da ave, os prognósticos sombrios. Os estranhos fios da democracia eram diariamente arrebentados e a pata observava o remendo da bandeira se descosturar.

Os olhos limitados dos humanos eram incapazes de compreender os sinais do tempo, os finais dos ventos, uma tempestade de chumbo estava prestes a desabar. Filomena observava do seu quintal a estranha correria. Enfileiradas, as formigas carregavam para longe as suas crias. Os cupins alados não voaram naquela manhã, pois uma fragrância acre pairava nos céus.

Um sussurro ferino pulou de galho em galho e a pata demorou a enxergar os novos informantes, aquela cor impregnava as páginas dos jornais, um verde-amarelo sepulcral. Os olhos cintilantes dos sentinelas felinos regrediram, eles não avançavam diante do perigo. A porta do quintal permaneceu trancada, tinha alguma coisa errada.

A névoa dos pântanos longínquos, aquela que tanto Filomena fez menção, foi surgindo de mansinho. A tal camada daquele líquido pulverizado no ar e que turvava a vista, que engolia os ruídos, que devorava sem piedade qualquer sinal de revolução, camuflou a sujeira do lamaçal. Sobre o colorido do mundo uma densa cor cinza foi tomando corpo e devorando os rastros de sangue até só restar vultos desamparados.

Filomena mesmo sendo um pato-mudo da família Anatidae, tentou grasnar para os seus homólogos. Buscou nos ornitólogos alguma esperança de ser entendida, mas nem a Academia aceitou as suas evidências, os cascalhos com indícios de sangue, de vida, de crença, de dores, do árduo suor dos trabalhadores moídos até o pó. A palidez tomou de conta da vida e a bandeira despedaçou-se com a brisa cinzenta, os tecidos tinham algumas datas impressas, mas o mil novecentos e trinta e três aparecia em cada retalho, até mais que o sessenta e quatro bordado nas arestas.

A pata envergonhou-se do silêncio, mas não se calou e quanto mais andava na névoa mais via as ruelas despedaçadas. Naqueles becos invisíveis que aninhou o antissemitismo ela viu germinar um sentimento nocivo, confuso e pernicioso: o racismo e o nacionalismo. Começou com sussurros que foram espalhados pelos ouvidos, depois viraram alaridos desgarrados, até que se materializam e se enraizaram no Planalto.

Todos os bichos correram ao abrir da porta, tentaram se esconder da chuva corrosiva, da brisa fria no calor da cozinha, longe da marcha, da censura e dos disparos. Filomena diluiu-se no abraço.

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