Modo aleatório

Pensei bastante sobre o modo aleatório da vida no primeiro mês de 2024. Tudo começou depois de ler essas linhas escritas por Maya Angelou no livro Eu sei porque o pássaro canta na gaiola:

“Acho interessante que a menor das vidas, a mais pobre das existências, seja atribuída à vontade de Deus. Mas, conforme os seres humanos ficam mais abastados, conforme o padrão e o estilo de vida começam a ascender na escala material, Deus diminui a escala de responsabilidade em velocidade proporcional.”

Passado um tempo após a leitura, eu seguia a vida e de vez em quando lembrava das palavras sábias sobre essa espécie de determinismo (?) que a religião nos ensina a crer desde o princípio de nossas vidas. Eis que, num dia convencional, uma lagartixa perdeu a vida na minha cozinha e fiquei me questionando qual dos meus gatos tinha sido o algoz da bichinha. A desavisada deve ter saído casualmente pra dar uma volta e esticar suas pernas curtas. E zás! Perdeu um dos membros abruptamente, morrendo na sequência não antes de virar brinquedo entre as patas felinas.

Algo parecido aconteceu com as formigas que eu geralmente retiro das vasilhas de ração antes de lavar e num momento de menos paciência apenas joguei água em tudo, ignorando o tempo que elas poderiam levar pra sair do caminho. Essas coisas me deixaram ainda mais pensativa sobre o assunto e aqui segue uma pergunta retórica sem necessidade nenhuma de resposta: será mesmo que cada detalhe das existências dessas criaturas – ainda que não humanas – também é governado por uma vontade maior, por uma lógica que define até quando se estenderá suas trajetórias?

Enquanto eu dedicava uma parcela do meu tempo pensando nessa e noutras questões, filosóficas/metafísicas, tive a surpresa de mais um gato aparecer na minha porta. Um filhote já meio crescido, na verdade. Ávido por acolhimento e, sobretudo, por um pouco de ração. Diferente de ocasiões anteriores, pra ser sincera pela primeira vez, endureci meu pensamento e o afastei quantas vezes se fizeram necessárias. Dessa forma, o gatinho não teria como se sentir a vontade junto aos outros gatos que tenho. Não foi o suficiente. Por mais que eu o espantasse, ralhasse ou espirrasse uns pingos de água no seu pelo, ele esperava a minha distração para se aventurar repetidamente no pote de comida dos meus filhos. Nisso vi o rostinho dele mais de perto. Os olhos encorujados e projetados numa pelagem rajada com um incrível potencial de beleza pela frente era no mínimo cativante. O corpinho magro. Tanto que a cabeça se fazia mais proeminente do que realmente era.

Quase fracassei diante de tal observação. Mas, resisti. Coloquei ele pra correr aquela noite. “Toma teu rumo”, falei, “que eu não posso adotar todos os gatos do mundo” e entrei fechando a porta. Na manhã seguinte, o leite acabou. Saí cedo pra comprar na esperança de que a quitanda estivesse já aberta. Não estava. Ao chegar na calçada da vizinha uma cena inesperada me cortou o coração: o gatinho partido ao meio com os olhos abertos e acinzentados. As pupilas congeladas mirando a vida que ele não teve a oportunidade de conseguir desfrutar.

Foi impossível não pensar na hora que ele talvez pudesse ter alongado seu tempo de vida, caso tivesse sido acolhido na noite anterior. Me perguntei: fui eu quem movi a roda da aleatoriedade dele só porque queria economizar ração? Entretanto, depois de refletir brevemente rejeitei essa conclusão. Afinal, quem garante alguma coisa ou a segurança de alguém nesse mundo que a gente vive? Ainda mais quando se é um gato de rua atravessando os asfaltos sem noção certa de qual direção tomar, né.

Quando lembro do acontecido ainda me dói. É possível que essa explicação racional seja uma forma de amenizar a culpa que insiste em se colocar entre mim e a minha paz de ter feito a coisa certa. Aí é que a pessoa também acaba caindo na esparrela de achar que é Deus de alguma forma, ou algo que o valha, na responsabilidade de organizar a ordem das coisas por aqui. É mera ilusão supor que se tem o poder de controlar uma ou duas variáveis na vida. A verdade é que cedo ou tarde descobrimos que absolutamente nada está sob controle. E nós, nunca estamos de fato preparados: nem pra viver e nem pra morrer.

Rest in peace, gatinho.

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