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A cidade tá enfeitiçada

Enfeitiçar. Essa é uma palavra-ação importante. É coisa bonita, mas não é para qualquer um. Carrega um perigo. É uma palavra-medo. O feitiço sempre foi incompreendido pela mente monolítica, e que bom. Na diversalidade, contudo, a feitiçaria tem sido uma mandinga de bem viver, possível apenas quando vivenciada e feita.

“Olha Mãe Joana sentada no toco, que alegria! Olha Mãe Joana sentada no toco, fazendo feitiçaria!”. As gerações avós enfeitiçaram o chão, as paredes, as estradas, sentadas no toco que um dia foi um tronco onde apanharam amordaçadas. Os Brasis, tão contraditórios, são puros feitiços, porque sobrevivemos às chibatas e às pistolas apontadas para as nossas cabeças, trazendo (o povo indígena e negro) cor e pulso a esta nação.

Como diria Nego Bispo: enfeitiçamos até a língua, que Lélia Gonzalez constataria como pretoguês. Caminho sem volta que nos atravessa em força no funk, no samba, na capoeira, no grafite, nas macumbas, no carnaval, no pagode, nas conversas à beira da porta.

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Poder. Feitiço. Redefinimos a língua “oficial” que as instituições ultrapassadas e rijas tentam – em vão – preservar. E isso é luta constante, porque nesse contínuo de dominação colonial colocamos pitadas de indigeneidades e africanidades na construção desses textos verde-amarelos. Melhor dizendo: pretos. Frustramos o projeto de um Brasil imaginado, “puro”, “cristão” e “higiênico” à moda parisiense ou inglesa. Empretecemos os espaços, o solo, a cidade. Enfeitiçamos os ritos, a religião, com nossas mirongas. Temos agora mais deuses do que antes. E não me venha falar de sincretismo, não houve. Eles impuseram, de um lado, suas homilias e, do outro, nós saqueamos suas catedrais, fazendo seus deuses batucar, baiarem Umbanda e dançarem o Toré. Êh, macumba boa! A roda grande habita a pequena. A cidade habita o Terreiro, a floresta, a favela, o quilombo. Bruxaria.

Desenho: Igor Ganga

Ando pela cidade. Ela me cutuca, me grita. Um grito invisível. Só feiticeiros leem o grito da cidade. Nas ruas do bairro, naquela encruzilhada, no portal do cemitério, há um grito. É como diz o ponto, a epistemologia pombogiresca: “quando passar na porta do cemitério, moço, só não se esqueça de olhar para trás. Você vai ver uma moça vestida de preto, moço, ela é Maria, Mariá”. Escritos pretos habitam a cidade, diluídos nas suas lutas, nas suas ilusões, nas suas coragens e nos seus medos.

Adinkras, já ouviu falar? Linguagem antiga, de alta estirpe, complexa. Não é coisa de mundo grego, não. É África. Ontologia ancestral nas veias das ruas do Brasil mais profundo que se possa ir. Pulsando no portão de D. Helena, tão fervorosa devota da Virgem em Canto do Buriti. Toco a sankofa ali naquela entrada de sua casa, um texto que enfeitiça o espaço urbano de uma cidade tão orgulhosa de suas tradições.

Não deixa de ser cômico. Meus antepassados pregaram uma senhora peça na urbanização – e na urbanidade! -. Em ferro delicadamente moldado, um pássaro que não é uma pomba branca. Não é o Espírito Santo. É uma ave preta. Pretinha e olhando para trás. Que nos ferros antigos do portão, já quase enferrujados, tomam a forma de uma geometria santa corazonada. Vários corações. Várias sankofas. Quem tem olhos – sabedoria – para ler, que se atente. A mensagem está dada, mas ela é para poucos.

 

O portão grita uma imagem: é preciso seguir, mas reverenciando a história que fomos e que somos. Para nós, olhar para trás não constitui um vício melancólico. Olhamos para trás para podermos incorporar futuros. É assim, como diria Krenak: o futuro é ancestral. E esse futuro está grafado na cidade que nos desagregou, que nos expulsou, que nos sequestrou e que ainda nos aniquila pelas esquinas.

Podem matar nossos corpos, mas não matam a oralidade. Oralidade é feitiço, é mandinga, é ebó. Resistimos também nas poéticas batucadas de nossas vozes, mas não somos somente o povo da oralidade. Há tempos os colonizadores cegos tentam nos convencer – e nos relegar – somente ao lugar da oralidade, como algo exótico, algo de menos valor intelectual (o que sabemos que não é!).

Contudo, enfeitiçado, digo: somos o povo da escrita! Do Kemet (Egito) – negro, é bom que se diga – até os escritos de Carolina Maria de Jesus, somos o povo do papel e das letras. Está na hora de reivindicarmos nosso lugar originário de povo da escrita, embora não devamos esquecer todo poder da oralidade diante das múltiplas desagregações pelas quais passamos.

A escrita não é propriedade exclusiva da colonialidade. Somos keméticos, somos malês, somos ashanti e akan. Somos tupis e tupinambás. Somos potiguaras e tabajaras. A escrita também foi apropriada. Eles quiseram nos fazer analfabetos. talvez tenhamos sido para seus sistemas epistemicídas. Os hieróglifos são nossos. Os adinkras são nossos. Os pontos riscados nos chãos das macumbas são nossos. Os grafites coloridos são nossos. Os grafismos com suas mensagens são nossos. Quem pode dizer que isso não é língua? Aqueles que definem o que é língua na sua perspectiva limitada eurocêntrica? Não tenho ouvidos a esses, eu me pauto nos encantamentos das paredes da Serra da Capivara.

Arte: Igor Ganga

Fato é: enfeitiçamos a língua, a cidade, as ruas, o chão. Ainda que haja desagregação, habitamos a cidade de muitas formas, redefinindo-a com a fumaça de nossos cachimbos. Somos as “gírias” da urbe. Fizemos a polis girar e girar. Ensinamos-lhe saberes antigos, cochichando-lhe aos ouvidos nossos processos secretos de iniciação que a Grécia descaradamente copiou. Abrimos nossos livros, apresentamos-lhe nossos alfabetos e nossos deuses. Apontamos nossas estrelas, dando-lhe lições astrológicas riquíssimas. Descrevemos-lhe as belezas – e perigos – das nossas florestas, mas também de nossa geometria e matemática. Trouxemos-lhe nossos escritos e os tatuamos em seu corpo contraditório de cidade.

Ainda que ela, a cidade, nos trague, somos feiticeiros, não tememos a morte. Somos pactuados com a kalunga. Permaneceremos na cidade, assustando as colônias de bactérias compostas pelos moralistas hipócritas, que tentam nos encaixotar aos moldes de seu diabo terrivelmente cristão e parceiro de suas fés. Permaneceremos na cidade, como nossos ancestrais o fazem agora, neste momento, escrevendo não só em papel, mas também em concreto, em pele e em aço. E que todos vejam nosso grito de batuque enfeitiçando os ares. Há encantamento no mundo.

 

Malèmbe! Saravá.

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