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TAUANA QUEIROZ: O BARULHO DE SER MULHER-METEÓRICA

Tauana Queiroz. Foto por: Jonathan Dourado

Tauana Queiroz. Foto por: Jonathan Dourado

Meteoros são fragmentos de alguma coisa muito pequena, que atravessam a atmosfera de forma tão veloz que se transformam em uma luz intensa, rompendo o céu. Para quem vê daqui de baixo: é beleza, cor, velocidade e potência. Para quem ouve Tauana Queiroz, talvez, a sensação seja parecida, e o adjetivo lhe cai bem: Meteórica. A cantora, compositora e percussionista piauiense, por meio de suas composições poéticas, sensíveis e potentes, aborda em sua música temas como identidade, amor entre mulheres e maternar.

“Ser mulher, mãe, nordestina… são várias camadas que vão somando à minha percepção e criam esses espaços na minha música.”

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Com uma carreira de mais de dez anos, Tauana nos conta sobre sua trajetória como mulher na música, sobretudo, no forró. Destaca as vivências durante os anos à frente da banda As Fulô do Sertão, onde pôde aprender muito sobre o palco. Além disso, fala ao Geleia sobre sua estreia solo, em 2022, com o disco Meteórica, que conta com nove faixas autorais — incluindo a música que dá nome ao álbum e que foi vencedora do prêmio de Melhor Canção no 1º Festival Música da Gente, realizado pela Rádio FM Cultura em 2022.

Meteórica é um divisor de águas. Porque realmente me mostrou. Me mostrou ali como compositora e cantora.”

Em entrevista a artista também comentou sobre as bandas que integra e as parcerias que desenvolve, ressaltando sua participação na Banda de Pífanos Cajú Pinga Fogo, que lançou o álbum Detrás da Serra recentemente (18/04). Fala, ainda, sobre o novo disco, que será lançado este ano com a banda Sarminina. Tauana destaca também o projeto Forró Zabumbado, de valorização do forró, e suas parcerias com Ravel Rodrigues, no show Meu Piauí, e com o cantor parnaibano Daniel Filipe, no duo Rio Pra Par  Mar Pra Ter.

Tauana nos conta sobre a importância dessas parcerias com artistas locais, pois acredita que o apoio e a colaboração entre os artistas do próprio estado promovem o desenvolvimento do cenário musical piauiense. Que a música só circula e se fortalece quando as pessoas se apoiam, respeitam e como ela mesma diz: “se tocam”.

“Sigamos com essa certeza de que o afeto, a escuta, o contato —  seja numa sala pequena, grande, para duas ou para duzentas pessoas é fundamental para a nossa continuidade como gente.”

No dia 12/04/2025, Tauana Queiroz recebeu a Geleia Total em sua casa, com entusiasmo, acolhimento e um café quentinho.

Geleia Total: Qual é o lugar da música na sua trajetória? De que forma ela se apresenta para você, não só como sujeito, de forma individual, mas também como parte de uma cultura, de uma sociedade e de uma memória coletiva nordestina e piauiense?

Tauana Queiroz: A música foi um lugar que eu achei para me entender como gente, assim, no mundo. Na verdade, foi através da palavra. Eu acho que a palavra sempre teve uma força muito grande na minha vida, antes mesmo de eu entender que essa palavra poderia ter um som, talvez. Então, sempre foi muito uma prática escrever. Primeiro, histórias imaginadas, coisas de criança, da vivência de uma criança. Depois, com o passar dos anos, os assuntos vão mudando. Na adolescência, no início da vida adulta, os assuntos foram mudando um pouco, as minhas reflexões sobre o mundo, as coisas ao redor, a percepção fica diferente. Depois, eu descobri que isso podia ter um som, que eu poderia musicar aquilo que eu tinha feito, né? Então, a música é esse lugar onde eu me encontro.

Geleia Total: Tauana, suas composições sempre trazem um trabalho poético muito delicado. A música e a poesia são artes que caminham muito próximas. Que lugar essas duas artes – a música e a literatura – têm na sua vida e em que ponto elas se interseccionam?

Tauana Queiroz: Como eu cresci com minha mãe contando histórias e meu pai tocando violão, eu acho que foi uma realidade apresentada pra mim que possibilitou ver e experimentar outras coisas. Como eu disse, em determinado momento, juntei as palavras com sons e percebi que podia criar a partir disso e que eu era boa fazendo isso! Eu gostava muito das coisas que escrevia. Demorou um pouco pra ter confiança de mostrar, mas hoje acredito muito no que produzo. Tenho consciência de que é bom, sabe? Que eu consigo fazer de uma maneira que fica legal e que emociona. Eu acho que o que mais mexe comigo e me impulsiona a criar é conseguir emocionar as pessoas em algum lugar que elas se identifiquem com a música, com algo que, às vezes, eu criei ou vivi. 

Foto: Jonathan Dourado

Geleia Total: Suas canções, até as mais dançantes, visitam sempre um lugar das sensações (sensorial), dos sentimentos, do afeto e até da reflexão. Como funciona o seu processo de composição? Você tem alguma rotina criativa?

Tauana Queiroz: É bem diversa, assim, porque tem música… Geralmente, as músicas chegam muito, muito rápido, algum trecho, e eu tenho que parar o que eu tô fazendo pra… se eu quiser realmente fazer aquela música, eu realmente tenho que parar pra gravar. 

Uns 10 dias atrás, eu tava descendo no supermercado, e aí veio uma ideia e eu parei o que tava fazendo e escrevi no celular, depois passei pro caderno. Às vezes, é direto no caderno. Mas eu já fiz música assim, com esse meninos subindo e descendo  aqui desse sofá. Aquele turbilhão de emoções, e eles subindo e descendo, nem aí pra mim, e eu no meio, obcecada com a escrita, com a música. Mas geralmente vem a letra, e aí eu penso num som. Isso é mais frequente do que o contrário. Aí depois vou trabalhando – não, isso aqui não tá legal –, e vou decantando aquilo. Nem tudo que a gente escreve é bom, né? No final das contas. Mas depois você vai fazendo essa seleção – isso aqui vale a pena usar em algum lugar, mostrar pra alguém e tal. E a partir disso vai criando os repertórios.

Geleia Total: Você tem uma relação marcante com os instrumentos de percussão, especialmente com a zabumba, que é o instrumento que te acompanha sempre. Inclusive, você participa de um projeto de forró pé-de-serra, que é o “Forró Zabumbado”. Você poderia comentar um pouco como esses elementos atravessam a sua musicalidade? E falar um pouco mais sobre o projeto?

Tauana Queiroz: Eu, desde pequenininha, já tamborilava as coisas – mamãe usa essa palavra, “tamborilava”, porque eu acho que é como meu avô também fala. Meu avô materno sempre gostou muito de música, ainda é vivo, e conta as histórias de quando tocou zabumba numa festa até os dedos doerem!

Minha mãe conta que viajava com ele pequena, e ele ia batendo na porta do carro e cantando. E eu fazia muito isso também na infância. Eu vinha cantando com minha mãe na volta da escola – geralmente músicas das histórias – e a gente começava a batucar no carro. Ela sempre usou instrumentos de efeito, tambor, dentro das histórias. Eu fui vendo aquilo e me interessando também.

Eu tenho uma cena na minha cabeça em que eu, bem pequena, acho que eu devia ter uns quatro, cinco anos, não sei – pode ser que fosse um pouco mais velha – com um pandeiro daqueles de plástico, de criança, e o papai cantando “Canto da Ema”, do Jackson do Pandeiro: a ema gemeu (cantarola) e eu com o suporte do violão fingindo que estava cantando no microfone. É muito bom ter essa memória. A percussão me acompanha desde sempre. 

O violão veio primeiro. Eu tava terminando o ensino fundamental I pro II e tinha um amigo que tocava e que me ensinou um pouco. Aí eu fui pegando umas músicas que eu já gostava,Vanessa da Mata, Maria Gadú, eu devia ter uns doze, talvez treze anos. Fui pegando gosto. 

No começo da vida adulta, eu fui pra uma confraternização da Colônia Gonzaguiana, que é um grupo de pessoas que gostam, que vivenciam e estudam o forró, a música nordestina e a obra de Luiz Gonzaga, coordenado pelo professor Wilson Seraine. Meu pai e minha mãe iam para os encontros, confraternizações, onde tinham pessoas tocando. Nesse dia, eu me interessei por pegar a zabumba.

Não tinha familiaridade, não tinha esse instrumento em casa, nem era frequente ir para shows de forró. Ouvia CD’s do Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Elba Ramalho, isso sempre fez parte. Mas não ia tanto pra shows. Me ensinaram um ritmo básico nesse dia e logo depois peguei o instrumento pra testar e começar a estudar. A zabumba abriu um leque de possibilidades de outras percussões, de outros tambores, pandeiro, efeitos. Eu entendi que poderia fazer isso também, e que eu gostava muito. É uma maneira de me expressar, sem palavras dessa vez, só com o corpo, com movimento, com mais força ou menos força.

Geleia Total: E Tauana e o Forró Zabumbado?

Tauana Queiroz: Tauana e o Forró Zabumbado dá continuidade a uma experiência de 10 anos de vivência no Forró que começou com As Fulô do Sertão, um trio de mulheres. Nós encerramos as atividades no ano passado e a partir disso, eu pensei: “Agora eu quero estar a frente de um projeto que tenha minhas músicas”. Algumas já surgiram nesse processo do ano passado para cá, pensadas para isso. Minha voz tem uma característica de leveza, que eu consigo passar até para o forró, que é um ritmo mais dançante. No começo, eu achava que isso era um defeito e que não daria certo, porque o forró é aquilo que vai arrastando todo mundo. Mas aí, fui descobrindo uma maneira também de me posicionar, falar de temas que acho importantes, me identificando com esse espaço. É diferente quando você está com um trio, com uma banda, você divide muita atenção ali. Você pode estar na frente, mas tem outras pessoas. No Forró Zabumbado, não. Já começa por mim, meu nome, sou eu ali a frente. É um projeto que me dá muita força, me anima a continuar produzindo. Estou investindo e fazendo gravações de músicas novas pra lançar esse ano. 

Foto: Jonathan Dourado

Geleia Total: Em 2025, seu primeiro álbum solo, Meteórica, completou dois anos. O que esse trabalho significa na sua carreira e na sua vida?

Tauana Queiroz: A gravação desse álbum veio através de uma lei de incentivo. E, bom, eu vou voltar um pouco, porque até o período da pandemia eu atuava somente com bandas, tocando, cantando, compondo uma ou duas coisas. Se você for ouvir a obra da Banda de Pífanos Cajú Pinga Fogo, eu tenho uma música minha gravada, mas não lembro de outra que fiz naquele período. Nas Fulô do Sertão, já tinha uma ou duas, mas muito tímido. Eu não estava muito concentrada nisso, não era meu interesse naquele momento. 

Veio a pandemia. Pá! Um belo dia, bem no começo da pandemia, eu li aquele livro do Ailton Krenak, Ideias para Adiar o Fim do Mundo. Lembro, assim, com nitidez, porque foi um sentimento muito avassalador, uma virada de chave. Eu digo que praticamente ouvi o som da chave girando na minha cabeça, de tão impactante. Quando você lê uma coisa que te marca tão profundamente que não dá para continuar da mesma forma, com o mesmo pensamento. E aí pensei: “Eu vou, eu quero escrever, quero falar mais de mim, passar mais tempo pensando nas músicas, na minha visão do mundo.” É legal interpretar e tem trabalhos fantásticos de intérpretes. Pessoas que passam a vida interpretando, e aquilo pode ser fantástico! A exemplo de Maria Bethânia, que eu acho que é uma das maiores que nós temos, e a Gal também. Mas eu pensei: “eu acho que sou compositora, eu escrevo há tanto tempo. Por que não sentar e me organizar um pouco para juntar essas ideias”. Como teve o fator tempo, e, claro, a possibilidade, o privilégio de poder realmente me resguardar como a situação pedia, fui investindo nas novas canções. E aí veio a ideia de Canções Que Me Dão Asas, nome inicial do projeto. Eu não sabia muito o que era, só sabia que era o nome que regeria aquele momento. Fiz o Instagram, comecei a postar vídeos caseiros. Passei um tempo em uma casa na praia e lá também surgiram muitas composições. A maioria das composições desse álbum, acho que umas seis, talvez sete, foram lá, e acho que tem um pouco desse sentimento também. Por exemplo, Certezas de Bem-Te-Vi fala muito desse período. Não lembro se foi a primeira música que eu fiz, mas foi uma das primeiras e tem muito sentimento  da escrita do Krenak também.

 Depois da pandemia, decidi concorrer ao Edital Prêmio Maria da Inglaterra, da Lei Aldir Blanc, para gravar o álbum e fui aprovada. Gravei no estúdio do Iago Guimarães, que morava aqui na época, Casinha Lab, e convidei alguns músicos para fazer parte desse processo. Fiz os arranjos das músicas, gravei, mas não lancei, estagnei o projeto. 

Em 2022, veio o primeiro festival, Música da Gente, realizado pela FM Cultura, que aconteceu no Teatro 4 de Setembro. Eu inscrevi Meteórica para concorrer e a música foi pra final. Eu relutei à ideia de me inscrever no festival. A Isabela me incentivou muito e alguns amigos próximos também. Era uma experiência nova, a primeira vez que eu subia no palco de um festival pra competir com uma canção. Naquele dia, eu pensei: “Poxa vida, tem pessoas aqui que eu ouço desde a infância, que me viram começar, inclusive”. Isso me deixou um pouco insegura, mas eu fui mesmo com medo. Cantei, cantei acreditando muito. Não acho que foi a minha melhor apresentação, mas a música ganhou, porque a música tem força, essa música tem muita força, né? Meteórica ganhou na categoria “Melhor Canção”. Isso me deu muita força, me deu visibilidade e um certo reconhecimento. As pessoas começaram a falar no meio artístico e fora dele, a se interessar pelo meu trabalho. Até então, não tinha nada publicado da carreira solo. A canção para participar do festival tinha que ser inédita. Penso que esse era o  sentido de eu não ter lançado antes o álbum, de ter demorado tanto nesse processo. Quando finalmente chegou ao público, em março de 2023, a música já estava circulando na rádio e meu nome também. Meteórica é um divisor de águas, porque realmente me mostrou ali, como compositora e cantora.

Geleia Total: Durante o lançamento do Meteórica, você comentou que o álbum expõe pensamentos, amores e suas questões com a vida. Então, em seu álbum de estreia solo, você já mostra ao público um lado muito íntimo e vulnerável. Como foi para você encarar essas emoções nas letras e compartilhá-las com o público?

Tauana Queiroz: Realmente, esse álbum me desnuda muito. A música Titata fala sobre meus filhos. Fala sobre a maternidade, como a maternidade chegou na minha vida. Com duas crianças que vieram pra mim, que vieram com a Isabela pra minha vida e que se tornaram meus filhos. E que são meus filhos. E eu fui pega muito de surpresa também com toda essa emoção, toda essa força que é o maternar, com todas as dificuldades, levezas, durezas, tudo que envolve você educar e acompanhar o crescimento de crianças. Quão vulnerável isso deixa a gente também, porque dá muito medo em alguns momentos. O que é que faz aqui? Não tem manual? Como eu posso ajudar essa criança a entender isso? Percebi que tenho que preservar minha saúde física e mental também pra poder continuar no margeamento dessas pessoinhas. Então, Titata fala muito disso. Fala de me abrir completamente pra essa experiência. De como ela me desnudou, foi quebrando coisas no caminho e construindo também. Tudo junto, assim. Muita coisa.

Aí fala de amor, fala de afeto. Às vezes, na música, não deixo evidente se é um homem ou se é uma mulher — no sentido de que quem ouve, fora do contexto, não vai saber, a pessoa não me conhece e tudo. Mas em alguns momentos eu deixo muito evidente. Eu quero falar também do amor entre mulheres, porque isso é importante pra mim, é a minha vivência, e a gente precisa fazer isso, porque isso não está muito dito nas canções

Ser mulher, mãe, nordestina… são várias camadas que vão somando à minha percepção e criam esses espaços na minha música. Por exemplo, Lar é uma música que é curtinha, mas que vai entrando assim. Eu tenho a impressão de que ela vai entrando, entrando, entrando em você com uma força e isso as pessoas me dizem também. Então, é muito legal. Me emociono com essa música, porque eu sinto que está chegando em algum lugar nas pessoas, sabe? Eu acho que a gente precisa disso. Porque é bom, é legal a música numa balada, em que você não está prestando muita atenção, ela cumpre um papel também.

Mas eu acho que a música que você reflete também cumpre um papel, que não pode ser esquecido, não pode ser abandonado, porque a gente está correndo contra alguma coisa que inventaram na nossa cabeça, na nossa sociedade. A gente não pode abandonar esse lugar de escuta, porque, se a gente abandona isso, perdemos muito da nossa humanidade, da sensibilidade, do nosso carinho pela vida. “Sigamos com a certeza de que o afeto, a escuta, o contato —  seja numa sala pequena, grande, para duas ou para duzentas pessoas é fundamental para a nossa continuidade como gente.” Para a gente não virar só uma máquina exercendo funções. A realidade é muito dura, sim. Nem todo mundo pode parar. Nem todo mundo pode parar pra escrever poesia. Não tem tempo, não tem condição. Mas muita gente escreve mesmo assim, mesmo não parando, porque a palavra tem força, realmente. E eu acho que transmitir isso, seja através da escrita, da fala, do som, é o que vai fortalecer a gente enquanto humanidade.

Geleia Total: O Meteórica também é fruto de um incentivo cultural e contou com a colaboração de diversos músicos, não só piauienses, mas de outras regiões do Nordeste. Isso mostra como o incentivo cultural movimenta não só o artista principal, mas todos os músicos envolvidos e, logicamente, quem consome também o produto artístico. Como você vê o impacto dos incentivos culturais estaduais na vida de artistas, especialmente mulheres? E o que pode acontecer quando esses incentivos não chegam?

Tauana Queiroz: Olha só, o que eu percebo? Que no Piauí — os outros estados eu não sei, porque eu não tenho vivência. Mas acho que isso pode ser um ponto comum em vários lugares: a gente não consegue circular com a nossa música dentro do próprio estado. Não vamos nem falar de sair do estado — vamos falar de circular dentro do nosso estado. O artista não tem incentivo pra formar público. Então, às vezes, viabilizar essa logística é muito difícil. Você, pessoalmente, sair daqui de Teresina pra mostrar sua música no sul do Piauí… É longe, sabe? É custoso. E os incentivos, eles têm que vir nesse sentido, de fazer com que a gente realize, não só aqui em Teresina. Tem artista produzindo em várias cidades. Tem gente fazendo música, compondo, gente muito boa, mas que não chega em Teresina, não vai para Parnaíba, não chega em Piripiri, não é conhecido no sul do Piauí. Então, eu acho que o papel de uma lei de incentivo, de um edital, é esse: viabilizar que o artista consiga produzir, seja remunerado por isso e remunere com dignidade as pessoas que trabalham junto. Essas oportunidades precisam ser disseminadas de maneira igualitária pelo território do estado. A gente precisa não concentrar tanto também aqui em Teresina. 

Falar em sair do estado é quase um sonho. Pra isso, você tem que realmente buscar um festival fora, que pegue você aqui e leve, porque realmente é difícil essa circularidade. Então, acho que o incentivo deveria vir daí. Mas, sim, as leis foram fundamentais, principalmente no período da pandemia. É uma conquista muito importante para a classe artística, que essas leis permaneçam como apoio, manutenção do fazer. Viver só de show em bar, de ficar buscando sempre isso, é muito desgastante. 

Eu entendi que a gente até pode conseguir fazer as coisas sozinha, mas não tem a mesma força, o mesmo alcance. Se junte com outras pessoas, misture suas músicas, faça um show e vá. Vá tentando ir para os lugares.

Eu vejo muito esse movimento. Eu acompanho a cena de Recife e de São Paulo. E os artistas independentes estão sempre fazendo criações coletivas. Vamos andar junto, porque a gente se fortalece. Fiz uma postagem um dia desses, falando: “Gente, a música piauiense… cante a música daqui também. Se você é intérprete, coloque a música daqui também. Não é possível que você não se identifique com nada. Procure algo que faça sentido pra você e coloque na sua apresentação”.

A família da minha esposa é de Juazeiro do Norte. A gente vai pra lá visitar a família e conheci o primo dela, Gabriel Divé como uma voz linda, um cara muito talentoso, multi-instrumentista. E chamei o Gabriel pra cantar uma música no álbum. Pra mim foi muito legal proporcionar isso e acredito que talvez tenha deixado uma centelhazinha na cabeça dele, sabe? Convidei a Isabely Fonseca, que também é de lá, pra recitar uma poesia dela que fala sobre amor entre mulheres e o Daniel Felipe, que é um amigo e compositor de Parnaíba pra gravar junto. Tenho projetos com o Ravel Rodrigues, com a Sorane Costa, a Écore Nascimento, acabei de lançar música com a Roberta Zerbini… E é isso, tô buscando mais mulheres pra gente se fortalecer. Porque, se a gente não abrir espaço, é muito raro que nos chamem. Eu tô buscando essa rede, que a gente se fortaleça, que a gente vá junto. Eu acho que a música piauiense — de forma geral, lógico, generalizando mesmo — não entendeu que a gente precisa andar junto. Não entendeu. Tá todo mundo fazendo o seu e, sim, são trabalhos incríveis, mas juntos o impacto seria outro. Eu acho que isso fortalece muito mais!

Capa do novo single da cantora Tauana Queiroz em colaboração com a cantora paulista Roberta Zerbini. Ouça aqui.

Geleia Total: Tauana, desde 2014, você integrou a banda As Fulô do Sertão, que resgata a cultura nordestina com a força do forró, do baião raiz. A banda era composta por você, Écore Nascimento e Adnayane Marins — três mulheres talentosíssimas. Como você enxerga, hoje, a representação e a participação das mulheres no forró, um gênero que historicamente carregou (e ainda carrega) traços de uma sociedade machista?

Tauana Queiroz: As Fulô do Sertão foi a primeira experiência de palco que eu tive. E foi uma escola que me colocou no palco com o instrumento e com o microfone na frente. Eu tinha 17 anos quando comecei a tocar no Fulô. Eu era muito nova. E tem os prós e os contras disso. Tem os prós de você, muito novo, já ir aprendendo. Mas, às vezes, esse “aprendendo” vai meio cambaleante em alguns sentidos. Meu caminho foi esse.

Hoje eu tento compreender cada etapa da minha carreira, sabe? E eu entendo a importância das Fulô. Me botou no palco, me levou para cidades do interior e também pra fora do estado. Fui entendendo muito o que era ser artista em cima de um palco. E sobre  dividir opiniões ali com as outras integrantes, que fazem parte desse caminho. A gente foi criando coisas juntas, foi entendendo que tipo de repertório para qual lugar, e entendendo a importância de realizar isso como mulheres. De “vamos botar os instrumentos na frente e vamos fazer, ensaiar, tornar essa apresentação convidativa e fazer bem o nosso trabalho”, pra que as pessoas reconheçam pela qualidade de execução, qualidade de composição, de interpretação de voz, não porque as integrantes estavam vestidas de um jeito tal que a pessoa achou bonito.

Porque eu sinto que, às vezes, a coisa da representatividade feminina se esvazia muito, o sentido dessa palavra, né? Às vezes, isso é muito banalizado. E isso é uma discussão fundamental. Mas tem que ser feito com muita responsabilidade e com muita consciência. Isso tem uma força, tem uma responsabilidade muito grande. Porque realmente mexe com a estrutura da sociedade, que vem desse legado patriarcal forte e muito determinante.

A gente via as meninas, crianças, assistindo. E eu sempre me emocionava — eu sou muito chorona, né?–  E eu via as meninas e ficava: “Rapaz, imagine se essa menina aqui toca daqui uns dias? Se ela imagina que ela pode cantar também?” Sabe? O quanto isso foi um estímulo pra eu continuar também com a banda. E eu acredito fortemente que a gente tem influenciado outras gerações.

Aqui em Teresina tem outras bandas com formação exclusiva de mulheres. Essas artistas precisam de espaço, credibilidade e confiança, de outras  mulheres e dos homens, se posicionando, defendendo e entendendo a importância disso. 

Pra isso acontecer, é todo um trabalho de geração em geração… Eu ensino pros meus filhos que escutem as mulheres. As mulheres são deslegitimadas antes mesmo de falarem. Isso é muito cruel. Isso afasta muito a gente de palco também, da possibilidade:“não, eu não vou nem tentar tocar esse instrumento porque não vou conseguir tocar esse instrumento. Olha, tantas pessoas, homens, tocando esse instrumento… isso é muito difícil, eu não vou conseguir, aí não vou”.

A minha voz… Por muito tempo, eu quis esconder muito a minha voz. Eu ficava escondida ali no back vocal e pronto, a minha participação era essa. Depois que eu entendi que poderia cantar, fui me soltando. E as pessoas foram comentando: “Olha que voz linda!” E aí eu fui entendendo também, né, essa coisa de você ser validado pelo outro — que é uma faca de dois gumes. Você não pode ouvir tudo, mas é legal que você escute o que as pessoas estão achando também. Esse negócio de “artista não precisa ter plateia”, não entendo. A gente planeja e realiza para mostrar também. Eu acho que isso faz muito parte. Eu estou aberta a saber o que as pessoas estão achando do meu trabalho, porque faz parte.

 A atuação da banda As Fulô do Sertão fica  na história musical da cidade. Aprendi  muito nesses anos. E, depois que entendi o que eu queria – não só no forró, mas com relação a tudo –, eu não abro mão. Mesmo que eu bata com a minha cara na parede. Mas eu vou, e vou fazendo, vou descobrindo o caminho, vou descobrindo o que é que tem na frente, sabe?

Geleia Total: Você também faz parte da Banda de Pífanos Caju Pinga Fogo e integra outros projetos lindos, como o duo Rio pra Par, Mar pra Ter, com o cantor Daniel Filipe, e o projeto Meu Piauí, com Ravel Rodrigues, além de outro projeto. Você poderia falar um pouco sobre esses projetos e como tem sido equilibrá-los? E o que podemos esperar para o futuro da sua carreira solo e das bandas que você integra?

Tauana Queiroz: Hoje atuo em duas bandas: Sarminina e Caju Pinga Fogo, além de trabalhos com outros artistas e do meu projeto solo com o Forró Zabumbado e com Canções que me dão Asas. Sarminina é uma banda de música regional nordestina, focada no coco e na ciranda. É um projeto autoral, com algumas interpretações, e estamos gravando um álbum que sai ainda este ano. As canções são minhas, da Hamanda Soares e da Ade Porfírio, que lideram o projeto junto com Ravel, Arnaldo e Isabela na produção. Caju Pinga Fogo existe desde 2016 e está lançando um novo álbum agora, dia 18. Depois de anos sem lançar, voltamos ao estúdio com um trabalho amadurecido, focado na cultura do pífano, que vai além do forró, incluindo ritmos como baiano, samba matuto e baião cabaçal. A banda é formada por mim, Rafaela Gomes, Javé Montuchô, Leo Mesquita e Beto Boreno.

Tem também o trabalho com o Ravel Rodrigues, que é um trabalho fundamental e que a gente quer muito que vá pra frente. A gente quer conseguir, inclusive, o incentivo público pra fazer isso que eu te falei: circular. Ir pra Oeiras, Bom Jesus, Piripiri, Parnaíba, Floriano… vamos circular, porque é um projeto que traz vários compositores e compositoras. A gente fez uma seleção e apresenta no show, misturado com músicas minhas e do Ravel. Então, a gente interpreta outros compositores daqui. Eu fui descobrindo músicas que eu não conhecia, tocando outras que já faziam parte da minha vivência e tudo, e a gente entendeu assim: “Rapaz, a gente não vai conseguir, de uma vez, fazer uma apresentação num teatro, não vão abrir essa oportunidade”. Então, o que a gente vai fazer? Vai para os bares, vai circular, para as pessoas ouvirem, porque as pessoas não conhecem. Como eu te falei, não conhecem muito da música piauiense, não se escuta. Tem não sei quem que diz – o Ravel fala e eu reproduzo – que o problema da música piauiense é que ela “não se toca”. Não se toca no sentido de que não se toca as coisas daqui, a gente não se toca aqui. Tem que se tocar! Isso não é doido? A gente precisa cantar nossas canções.

Então, eu trabalho com o Ravel, que é um grande defensor também da produtividade no Piauí, das composições piauienses feitas por piauienses — seja onde os piauienses estiverem, né? Mas com muita força aqui, porque tá dentro de uma realidade, mexe muito, né? É diferente de você, por exemplo, ser piauiense e passar a vida toda morando em outro lugar. É uma outra vivência. Aqui, a gente tá falando de coisas que são muito daqui. Eu acho que, analisando as músicas, a gente entende até a realidade da cidade, do estado.

Bom, tenho um duo com o Daniel Felipe que chama “Rio pra Par, Mar pra Ter”; junta o Rio de Teresina e o Mar de Parnaíba. O “Par” de Parnaíba e o “Ter” de Teresina. É essa troca afetiva com o Daniel Felipe, que é um compositor que eu admiro muito, que tem um trabalho também de muitos anos já. Me juntei com o Daniel pra fazer a mesma coisa que estou fazendo com o Ravel, tocar nossas canções. Só que aí, de músico pra músico, claro que vai mudando. Vai mudando a linguagem, as pessoas são diferentes, os trabalhos são muito diversos. Então, o trabalho do Daniel vai pra um lado, o do Ravel vai pra outro. E eu já sou outra coisa também. A gente descobriu como a gente pode fazer isso juntos, organizar de uma forma que a gente consiga. Vou revezando ali de violão com percussões e a gente vai fazendo acontecer a apresentação.

E aí tem o Forró Zabumbado, fora as músicas que eu toco voz e violão, as apresentações nesse estilo. Tem o Forró Zabumbado, que é continuidade desse caminho e que traz essa força que eu carrego do forró. Eu acho que é muito político também. São muitos posicionamentos políticos que eu tenho dentro do Forró Zabumbado. As músicas estão falando de amor entre mulheres. Tem uma música que foi gravada agora pela Cajú e que vai sair, e que está também no Forró Zabumbado, que fala: “tem rastapé, tem homem com homem, mulher com mulher.” Vai falando. Aos pouquinhos a gente vai introduzindo esses temas nesses segmentos, porque dentro da cultura tradicional, às vezes, é muito machista. Tem muitas questões das tradicionalidades da cultura popular brasileira, e eu acho que a gente precisa trazer para esses espaços essa reflexão.

O forró, em si, nunca foi uma coisa boba. Ele sempre foi político. Esses compositores, esses forrós mais tradicionais, traziam questões do sertão e do sertanejo, o que a gente está passando aqui, traziam sonhos também, vitórias, a força que a gente carrega, e traziam as vulnerabilidades também. Porque essa ilusão do povo nordestino forte, guerreiro, se acaba muitas vezes. Isso deteriora muitas pessoas, porque não é fácil ser guerreiro em situações caóticas, insalubres. Então, o forró traz muita coisa que precisa ser trazida. 

Os projetos são esses. Eu tenho a ideia de gravar um álbum. Botei agora, não foi aprovado nos editais públicos, mas vamos continuar, vamos viabilizar de alguma outra maneira, ver as possibilidades. A Isa é minha produtora, da Kariri Produções, e tá nesse processo comigo, incentivando e botando pra frente mil projetos ao mesmo tempo, com outras mulheres, com outros artistas também, pra mexer. Mexer a cidade. Vamos mexer, gente, vamos mexer, vamos misturar, sabe? Porque as coisas ficam muito paradas, engessadas, não vão pra lugar nenhum. A gente precisa mostrar coisas novas acontecendo também.

Eu tenho essa ideia de gravar com pessoas, inclusive, de fora. Pessoas daqui também, mas trazer pessoas de fora pra gravar aqui. Pra quê? Pra essas pessoas verem que existe produção aqui, em Teresina. Eu tava falando um dia desses no meu story perguntado  quantas pessoas lá fora estão colocando músicas piauienses nos seus repertórios? Se colocam, são músicas gravadas pelo Fagner, por outras pessoas que já estão mais na mídia, mas não tem com tanta frequência. A gente se preocupa tanto em tocar artistas de fora e não toca os de dentro.

E da carreira solo vem esse álbum que eu quero fazer. Tem muitas músicas já, estou fazendo essa seleção. Desde Meteórica até aqui, tem várias composições nesse caminho. Estou fazendo essa seleção. Quero muito gravar com outras mulheres, daqui e de fora. Estou vendo como viabilizar, porque trazer pessoas de fora é mais complicado também. Uma pessoa da Bahia, uma pessoa de São Paulo, uma pessoa do Cariri… é distante. E a distância geográfica entrava nesse momento aí. Mas é um projeto que eu acho que vai fortalecer muito a minha música. Vai deixar uma contribuição para a música piauiense de visibilidade mesmo.

E é isso. É esse o momento em que a gente está trabalhando. Agora, vou gravar com o Forró Zabumbado. Aqui tem uma formação que traz um cavaquinho pra dentro do forró, já tem outra dinâmica, swing. E vou gravar canções minhas no forró, pra circular também no período do São João. 

Forró de Quem Se Quer, faixa do novo álbum da Banda De Pífanos Cajú Pinga Fogo:  Detrás da Serra. Ouça o álbum completo.

Geleia Total: Por fim, você poderia deixar uma dica, um conselho ou até um relato da sua experiência para mulheres que compõem, mas sentem receio de divulgar suas músicas?

Tauana Queiroz:Tem muita mulher que faz, que produz, que compõe, e que deixa guardado, né? Exatamente por aquela insegurança que eu te falei, que é totalmente compreensível. É uma dinâmica muito comum, porque muitas coisas querem nos impedir de colocar a cabeça para fora da janela, respirar e ver o que tem do lado de fora.

Então, você, que é uma mulher que escreve, que compõe, que tem um trabalho no qual acredita — vá! Sozinha é muito difícil, e acompanhada por homens também pode ser. Eu tenho alguns que conto na palma de uma mão, que eu realmente acredito que estão comigo, que me apoiam de verdade. Então, encontre as pessoas que lhe apoiem. Não é toda mulher, não é todo homem também. Encontre quem são as pessoas que vão estar do seu lado para te ajudar a colocar a cabeça para fora da janela e ver as possibilidades. Às vezes, é só uma virada de chave que falta para você mostrar seu trabalho.

E não acredite em tudo que dizem. Ou melhor: não trave os processos por causa de tudo que falam. Vão falar coisas boas e ruins. Você precisa filtrar isso. É um aprendizado para a vida inteira. Eu mesma ainda estou aprendendo. Às vezes, não sei como fazer, e  choro ou sorrio, mas sigo. E é só assim que a gente vai para frente. É isso.

Geleia Total: É isso…Meteórica!

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Descrição: Cantora 

Escrito por: Ruanna Sousa

Revisado por: Paulo Narley

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