A AIDS FAZ PARTE DO TEU SHOW? TENS UMA CAMISINHA NA TUA COMPANHIA?

Por Francisco Júnior

“Olha a cara dela, a aids não é mais aquela”. Visão discutida em um encontro grupal do qual participei nos anos 1990, na cidade de São Paulo. De lá para cá, mudanças substantivas aconteceram no perfil epidemiológico da estigmatizante doença. Na bibliografia, ler “A Peste”, de Albert Camus e o “Estigma”, de Erving Goffman. Da “peste ou praga gay”, dos primórdios dos anos 1980, à sua cronificação, em 2023, para todos, todas e todes. Acompanhamos as transformações na história social de uma epidemia singular. De início, os homossexuais foram culpabilizados pela sua transmissão. Entre os grupos de risco, eram vistos como promíscuos, os bodes expiatórios dos primeiros passos de uma enfermidade moralista, a lepra bíblica do século XX. Além do HIV abalar o sistema imunológico corporal, colocava o seu portador sob decifração, julgamentos morais e indagações referentes às suas intimidades sexuais. Será que ele é bicha? Ativo ou passivo? Sexo oral transmite carga virótica? Usa drogas injetáveis? Estas e outras questões faziam parte do show cotidiano de quem apresentava uma sorologia positiva para o vírus mortal. Um imaginário religioso viu o dedo de um Deus punitivo. Um castigo para as danações pecaminosas dos outsiders, os desviantes, anormais e perigosos das Sodomas e Gomorras da Babel dos nossos globarbarizados tempos.

“Se você não se cuidar, a aids vai te pegar”. O “aidético”, estigmatizado, culpabilizado, além de buscar o reforço terapêutico das células de defesa do seu corpo, enfrentava a sobrecarga das construções sociais, das metáforas e dos preconceitos em relação ao seu quadro patológico. São registros memorialísticos de quem estava vivo no contexto histórico medroso e de terror no qual a aids surgiu. Os comportamentos coletivos em épocas pestilentas, nos olhares de Jean Delumeau, Georges Duby e Ingmar Bergman, em “O Sétimo Selo”. Estamos em 2023, com mais de quatro décadas convivendo com uma patologia vista atualmente como crônica, do mesmo modo que o diabetes. Com relativa tranquilidade, alguém diz: eu sou diabético. Com todos os avanços médicos e de mentalidades atuais, acontece o mesmo com quem é portador do vírus da aids? Ele assume para o público de hoje, sem constrangimentos, a sua soropositividade? Em meio aos encobrimentos, contar ou não contar era e é uma questão central.
São perguntas que passam pela cabeça de quem está interessado em atualizar sobre o como estão vivendo os soropositivos e os doentes de aids. Quais os remédios receitados? Ingerem quantas cápsulas e comprimidos por dia? As bulas e as suas colateralidades. Quais os ingredientes do “coquetel” terapêutico? E as ações preventivas? A moçada, entre os 18 e 25 anos, está usando camisinha, na prática do “sexo seguro”? E a versão feminina da “camisa de vênus”? As mulheres saem vestidas com os seus preservativos quando vão para as baladas noturnas, as filmadas noites felinas? Sem etarismos, incluamos os envelhescentes, os “coroas”, do “Clube dos Enta” (40, 50, 60, 70 anos…), os da “bela velhice”, lindos na ótica de Mirian Goldenberg, não aposentados das suas sexualidades.

Primeiro de dezembro é o dia mundial da luta contra a aids. Com uma linguagem bélica, procuram combater o inimigo invisível. “Quem vê cara, não vê aids”. Na companhia do cinema, a Tela Sociológica, curiosa, reatualiza temas, e quer saber do novo momento da história social da aids. Como estão as politizadas organizações não governamentais e o ativismo mobilizado? Em Teresina, na capital piauiense, a Graça Cordeiro resiste com o “Lar da Esperança”. Em que condições ela segue resistindo? Como está a Rede Nacional de Pessoas Soropositivas? Sobrou algum GAPA? E o Pela Vidda? Como os jovens estão encarando a aids em 2023, doença presente e ainda incurável? Para eles, é um assunto preocupante, viralizador? Chega a entrar nos seus bate-papos e rodas de conversa? Ocupa as redes sociais por eles acessadas? Nas paredes das nossas memórias, recordações do III Encontro de Adolescentes Reeditores de Informações Sobre Aids. Uma ação da Fundação Municipal de Saúde, em um tempo no qual Teresina era propagandeada como “cidade futuro”. Nas camisas do evento, era lida a seguinte mensagem: “Não importa com quem você transa… use camisinha. Não pegue e nem transmita AIDS!”.

Na companhia das letras do Caio Fernando Abreu, a “Dama da Noite”, “com seu perfume venenoso e mortal”, em um encontro intergeracional, provoca o seu jovem interlocutor na pauliceia desvairada de décadas passadas: “Você não viu nada, você nem viu o amor. Que idade você tem, vinte? Tem cara de doze. Já nasceu de camisinha em punho, morrendo de medo de pegar Aids. Vírus que mata, neguinho, vírus do amor. Deu a bundinha, comeu cuzinho, pronto: paranóia total. Semana seguinte, nasce uma espinha na cara e salve-se quem puder: baixou Emílio Ribas. Caganeira, tosse seca, gânglios generalizados. Ô boy, que grande merda fizeram com a tua cabecinha, hein? Você nem beija na boca sem morrer de cagaço. Transmite pela saliva, você leu em algum lugar. Você nem passa a mão em peito molhado sem ficar de cu na mão. Transmite pelo suor, você leu em algum lugar…” (ABREU, 1988, p. 94-95). Vivíamos assim. Tudo é história. O conto literário narra um contexto histórico, capta um imaginário datado, na escrita de quem sentiu o drama na própria pele. De Sampa para Teresina, capital do Piauí, os “aidéticos” baixavam no HDIC (Hospital de Doenças Infecto Contagiosas). Para os boys de 2023, o que diriam as suas Damas?

Na retomada de um tema pelo prisma de filmes sobre ele realizados, selecionamos BLUE, um filme de Derek Jarman, apresentado como o seu último trabalho cinematográfico e “a sua obra mais avassaladora”. Um texto fílmico “póstumo do poeta, pintor e cineasta…”, “filmado quando sua saúde já estava bastante debilitada em decorrência da Aids”. Na contraluz das telas, usando um tom de azul, Jarman subjetiva a experiência patológica de um particular enfermo. Em um experimentalismo cinematográfico, visceral, Jarman dirige e roteiriza a sua inspiração artística. Uma obra reflexiva, vocalizada das entranhas de quem protagoniza a projeção dos desdobramentos subjetivos do seu adoecer pessoal e coletivo. Uma tela azulada exibe vozes tradutoras dos ais gozosos e dolorosos de quem confessa que viveu desafinado, pintando e fotografando os seus excessos e exageros, poético nas suas maldições. O artista, a poesia, o memorialista, a efemeridade temporal, os cuidados paliativos e a finitude nos toques vocais reflexivos trilhados por experimentos sonoros em conjunto com barulhos hospitalares.

Um documento cinematográfico para evocar Cazuza, Caio Fernando Abreu, Lory Finocchiaro, Renato Russo, Mário Rudolf, Michael Pollak, Alberto Guzik, Valéria Polizzi, João Silvério Trevisan, Jean-Claude Bernardet, Robert Mapplethorpe, Reinaldo Arenas, Leonilson, Herbert Daniel, Michel Foucault e Hervé Guibert. Nas anotações à margem do viver com “AIDS/aids”, entre sobreviventes e mortos, “viver é o maior barato e faz mal à saúde” dos corpos que dão romances. Cartas, diários, narrativas autobiográficas, desconstruções textuais, protocolos da compaixão, peças de teatro, danças, instalações, relatos confessionais escritos com palavras e movimentos dolorosos, tocantes e que mexem fundo. Contágios e contaminações literárias. A escrita com o sangue do v(hiv)er positivo.

ABREU, Caio Fernando. Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Sobre o autor

O professor Doutor Francisco de Oliveira Barros Júnior é natural de Fortaleza- CE. É professor titular da Universidade Federal do Piauí e é docente do mestrado em sociologia e do curso de graduação em Ciências Sociais na mesma instituição. Idealizador do projeto Tela Sociológica, Francisco Júnior utiliza o cinema como uma ferramenta pedagógica.

 

TELA SOCIOLÓGICA

Exibição do filme “Blue”
Roda de conversa: A nova cara da AIDS

🗓️ Dia: 02/12/2023 (sábado)
Horário: 9h
📍 Local: Sala 340B (Auditório Professora Socorro Lira/ CCHL-UFPI)
Entrada gratuita

 

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