A Isca

Foto em preto e branco de Ananda Sampaio. Ela está deitada no chão, sorrindo, ela usa um vestido branco, e tem o cabelo preto e curto.

 

Enquanto não vou à livraria comprar a mais recente obra de Ananda Sampaio, releio seu primeiro livro, O Vestido. À medida que avanço nas páginas, pergunto-me por que sua escritura me agrada tanto. Só me acho capaz de encontrar alguma resposta se parar de ler ou me deter em passagens que sobremaneira me atraem, tentando capturar o sentido ou os sentidos da literatura produzida por essa escritora jovem, porém madura.

Já na epígrafe, ela dá uma pista, pois a citação é de Lygia Fagundes Telles, que se reporta a um “conselho” de ninguém menos que Clarice Lispector. Na impagável Carta Aberta Para Lygia Fagundes Telles (que não consta de O Vestido), Ananda Sampaio é humilde ao dizer que é pouco dotada para ler Clarice e afugentar a neblina da sua escrita. Lygia nunca respondeu a carta, mas a missivista se contenta em imaginar a autora de As Meninas com ela nas mãos de anciã. Em lágrimas, Ananda encontrou em Lygia sua escritora, mas Clarice é também presença explícita ou implícita em O Vestido.

Não que Ananda Sampaio as imite ou sobreviva à sombra como escritora. Nada disso! Lygia e Clarice já inspiraram uma pá de gente e sempre serão referência de boa literatura. Os estilos de ambas podem ser e certamente são escrituras que podemos usar para dialogar com as crônicas da autora piauiense. Falo em diálogo, não em supremacia.

Clarice e Lygia se projetaram como ficcionistas. O gênero palmilhado por Ananda é a crônica, portanto, não-ficção, embora isso não seja uma verdade absoluta nem possa servir como camisa-de-força, mas apenas de uma possibilidade de classificação e início de conversa porosa, como devem ser as conversas sobre literatura.

É bom ter isso em mente porque Missiva I, texto de abertura de O Vestido, bem pode ser considerado conto, e isso não será uma questão de rótulo, mas possibilidade expressiva que certamente dissolve fronteiras entre os gêneros, porventura existentes. Deve ser bom sinal para leitores e leitoras sentirem que a autora não fica presa no âmbito das categorizações. E que sua matéria prima é o texto em si e o percurso e percalços para fazê-lo.

Se considerarmos que Missiva I é autobiográfico e que a narradora em primeira pessoa é a própria escritora, isso pode fechar questão, o que nem sempre é razoável em literatura. Melhor aqui uma textura aberta. A narradora do conto, ou crônica, se quiserem, está em um quarto de hotel do Rio de Janeiro. Foi àquela cidade a trabalho. De repente, resolve escrever para um grande amigo. E o motivo é a solidão. Esse o primeiro desmonte. A Cidade Maravilhosa, com toda sua exuberância, não é capaz de deter a solidão, muito pelo contrário, deflagra o processo talvez mais temível para o ser humano. Além disso, a personagem está cansada de escrever para si mesma e por isso precisa do Outro, o amigo que não vê há dez anos.

Talvez ela mantenha um diário, cometa poemas, seja mesmo escritora. Seja como for, o ato de escrever a carta desfia uma série de dilemas pessoais, de uma subjetividade dilacerada:

“Não queria ser uma dessas pessoas deprimidas, que parecem sempre tão sozinhas e desesperadas por um tiquinho de atenção. Entretanto, foi exatamente essa pessoa que me tornei. Lógico que aprendi a disfarçar aqui e ali – aprendi alguns estratagemas, como sorrisos meia-lua, piadas prontas ou uma gentileza qualquer para amenizar minha densidade e deixar minha dor passar imperceptível”.

Com sinceridade implacável, a personagem vai botando os dedos nas feridas íntimas que a tornam infeliz. Puxa os véus, entre os quais, a hipocrisia, a vergonha, a falsa autossuficiência, a negação da dor. A personagem está nua. Quem a salva é a escrita da dor compartilhada, o desfiar de um diagnóstico psicológico de si mesma, no âmago do qual pergunta: “O mundo é bom?”. Ela própria responde: “Não, não me parece bom. Na verdade, só não acredito nele”. Para depois concluir que vive numa prisão, que parece tão ou mais torturante que a física.

Ao escrever, a protagonista única tem um rompante de liberdade: atirar-se ao mar com roupa e tudo que não é sua pele, faltar à reunião, mentir que não estava se sentindo bem – o que era verdade. Não doente dos rins, do estômago, dos intestinos, mas da “veia da vida que está entupida e nada passa”. A dor não está nos órgãos.

Mas isso é apenas um devaneio, dir-se-á, um devaneio que faz bem. A personagem só pensa agora no amigo: “Preciso te encontrar, te dar um abraço, te dizer tantas outras coisas”. Nesse dizer “tantas outras coisas” certamente está a vontade e o desejo de amor, e aqui pode entrar o erótico mesmo, além de outros que um certo grego disse existir. Mas isso de amores será também outra categorização? Não basta o amor puro e simples, sem causa?

Por fim, talvez aliviada com o desafogo, a personagem diz que está bem e pede ao amigo que não se assuste com os desajustes. Ela diz: “Ainda tenho aquela gargalhada que você tanto gosta. Estou guardando para você, mando agora no vento. Escuta?” A gargalhada e a alegria, tesouros maiores, estão guardadas para aquele que não é só Amigo, mas Amante, Amado.

Esse texto de abertura de O Vestido, livro de estreia, dá bem a possibilidade de Ananda Sampaio. Todos os textos do livro são por assim dizer plasmados na tensão das dualidades, dentro das quais a existência humana é incessantemente arremessada e onde o externo termina sendo elemento para o fluxo interno. Embora nocauteados, leitores e leitoras podem conjugar o verbo esperançar, como a personagem solitária de Missiva I o faz no final da narrativa.

O texto que fecha o livro é O Vestido Branco, mas não direi nada sobre ele, a não ser que pode ser lido como conto. Também nada direi sobre os outros trinta e dois textos. Prefiro deixar a cargo de leitores e leitoras a ventura e a aventura de ler Ananda Sampaio e encontrar, como diria Clarice, a palavra como isca.

 

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